"...há os que lutam
toda a vida e estes
são imprescindíveis"
(Brecht)
Dos grandes dirigentes revolucionários forjados pelo PCB na primeira metade do século passado, Jacob Gorender foi o último a sair de cena, ocupando agora seu honroso lugar na História, ao lado de Apolônio de Carvalho, Carlos Marighella, Giocondo Dias, João Amazonas, Joaquim Câmara Ferreira, Luiz Carlos Prestes, Mário Alves, Pedro Pomar e outros titãs que, a partir da origem comum, tomaram rumos políticos diferentes, mas permanecerão juntos na memória do povo brasileiro.
Para quem quiser saber mais sobre a trajetória do imprescindível Gorender, recomendo este ótimo necrológio (clique p/ abrir) do jornal Correio do Brasil.
Quero deixar registrado o quanto devo a Gorender. Com dignidade exemplar, ele foi fundamental para que eu recuperasse a credibilidade revolucionária, podendo então travar lutas importantes como a do Cesare Battisti; e, talvez, haja salvado minha vida, pois não sei se teria sobrevivido à crise terrível de 2004/2005 sem sua tomada de posição.
Foi quando minha carreira jornalística chegou a um impasse e, já cinquentão, perdi praticamente tudo que tinha, sendo levado a tal penúria que cheguei a acumular quatro aluguéis atrasados, a dar caminhadas de 20 quilômetros por não poder pagar o ônibus e a ter minha prisão decretada por um juiz que, baseado em meras suposições, convenceu-se de que eu estaria agindo de má fé ao suspender o pagamento da pensão alimentícia (até hoje ignoro por que nunca me buscaram, mas eu estava decidido a não alimentar-me em cativeiro).
Os raros frilas e a ajuda de alguns amigos só evitavam o pior, mas não me tiravam do sufoco. Conclui que a única esperança de dar a volta por cima era a reparação a que tinha direito, como ex-preso político que sofrera enormes danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência do arbítrio ditatorial.
Mas, por ter sido erigido num dos bodes expiatórios responsabilizados individualmente por uma derrota coletiva (e, pior, em luta impossível de ser vencida, tamanha a disparidade de forças!), a estigmatização prejudicava o andamento do meu processo na Comissão de Anistia. Embora eu houvesse arguido o principal quesito para priorização do julgamento --a condição de desempregado--, os meses se sucediam sem que ele fosse agendado.
Foi quando tomei conhecimento da existência de um relatório secreto militar que comprovava ter sido outrem quem abrira para o DOI-Codi a localização da área de treinamento guerrilheiro da VPR em Registro (SP), cuja localização eu nem sequer conhecia.
Procurei alguns dublês de jornalistas e historiadores (ou memorialistas) dos anos de chumbo, pedindo-lhes que esmiuçassem o caso e atestassem minha inocência, pois sabia que só assim o desmentido produziria o impacto necessário. Três se omitiram, vergonhosamente. O Gorender, de imediato, prometeu que confrontaria o documento por mim apresentado com outros igualmente secretos que ele possuía e, se fosse o caso, se pronunciaria.
Foi o que fez cerca de 10 dias depois, numa mensagem à Folha de S. Paulo e a O Estado de S. Paulo, que só a primeira publicou (vide aqui ):
"...no mês corrente, Celso Lungaretti contatou-me, por via telefônica, para chamar a minha atenção para o fato de que dera a aludida informação sob tortura e sabendo que o campo de treinamento onde estivera se encontrava desativado havia dois meses.
O relatório do comandante do 2º Exército na época (...) confirma que, efetivamente, aquele campo de treinamento fora desativado. Sucede, no entanto, que, quase simultaneamente, chegaram ao 2º Exército informações procedentes do 1º Exército, com sede no Rio de Janeiro, de que um novo campo de treinamento de guerrilheiros, adjacente ao anterior, se encontrava em atividade...
A respeito dessa segunda área, nenhuma responsabilidade cabe a Celso Lungaretti, que ignorava a sua existência. Sua vinculação com o episódio restringiu-se, por conseguinte, à informação sobre a área que sabia desativada..."
Foi um divisor de águas. A partir de então, disseminou-se a percepção de que eu havia sofrido uma grave injustiça, ao ser crucificado em função de uma delação alheia e de uma aparição na TV sob coação extrema, dias após haver sofrido uma lesão permanente nos porões da ditadura. Isto gerou boa vontade para mim no Ministério da Justiça, propiciou-me o lançamento da autobiografia com a qual finalmente pude tornar mais conhecida minha versão dos acontecimentos e, enfim, permitiu-me reconstruir a vida.
Estive com o Gorender uma única vez, ao entregar-lhe em primeira mão um exemplar do Náufrago da Utopia, dele recebendo seu recente Marxismo Sem Utopia. Sua casa, modesta, tinha como característica marcante a enorme quantidade de livros à vista.
Foi um encontro emocionante, mas a comunicação ficou um pouco prejudicada pela má audição de ambos; só quem tem o mesmo problema sabe o quanto isto é exasperante.
De qualquer forma, nada que eu pudesse dizer-lhe seria suficiente para expressar a minha gratidão por, em relação a mim, ele haver sido o primeiro a honrar o preceito fundamental da Rosa Luxemburgo, de que a verdade é revolucionária. Graças a ele, tive uma nova chance de ser feliz e também de cumprir a missão que me atribuí há quase meio século.
Um comentário:
É, Celsão.
Um cara como o J. Gorender, quando morre, deixa a gente numa situação chata: tipos como ele fazem falta. E, se a gente se servir da grande contribuição crítica dele, ó, vou te contar! Ele considerou a questão da democracia como poucos na esquerda têm desejado considerar. Um dia, contribuições como a dele terão a importância mais vital para o nosso campo de atuação e pensamento. Podemos ter uma ideia do que isto significaria, não é mesmo? Não se trataria apenas de reivindicar a democracia, radical e horizontal como deve ser, mas de muita coisa além disso. Como demarcar com clareza o inevitável divórcio entre capitalismo e democracia, se concordarmos com o húgaro Meszaros, segundo quem a crise estrutural do capitalismo se revela também como crise estrutural da POLÍTICA!
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