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"Eu sou brasileiro, mas não tenho meu lugar/ pois lá sou estrangeiro, estrangeiro no meu lar" (Boal e Garnieri) |
Em termos teóricos, só há uma posição verdadeiramente defensável, a de que temos todos um compromisso moral com nosso povo sofrido, de permanecermos aqui e tentarmos fazer deste um país do qual nos orgulhemos, ao invés de nos causar profundo desencanto e enormes preocupações.
Mas, não serei eu a me colocar num falso pedestal, como se tivesse sempre pensado assim. Ao sair das prisões militares na década de 1970, também flertei com a ideia de dar o fora, pois não suportava o fato de que até 1969 percebia-se uma surda insatisfação do povo (em especial a classe média) com a ditadura militar, mas tal sentimento alterou-se diametralmente com o (mal) dito milagre brasileiro.
As pessoas comuns geralmente tinham medo de recriminar publicamente o regime dos generais, mas nas suas conversas havia sempre críticas mais ou menos veladas à vida que estavam levando sob o arbítrio ditatorial.
Clandestino e caçado em todo país, com meu retrato nos cartazes de procurados, era gratificante para mim sentir que estava indo ao encontro dos sentimentos da minha gente.
Apesar de as perspectivas pessoais serem muito ruins (as chances maiores eram a de ser morto ou sofrer as piores torturas nos porões do regime), em nenhum momento cogitei aceitar a fuga para o exterior, que os coitados dos meus pais faziam até o impossível para viabilizar.
Recebia por meio de pombos correios insuspeitos suas mensagens desesperadas e respondia rechaçando as propostas e os consolando na medida do possível.
Então, quando a chance de comprar fuscas a prestação, lucrar uma merreca na bolsa de valores e ter acesso a alguns itens de consumo rasteiro bastou para mudar os humores de contingentes significativos de brasileiros. vendo brotarem como cogumelos os cartazes de Ame-o ou deixe-o, lamentava profundamente a morte de companheiros queridos para quê... para ISSO?
Quanto mais o balanço das forças, em termos militares, se desequilibrava em nosso desfavor, mais convicto eu ficava de que melhor seria morrer lutando do que recuar juntamente com os pusilânimes.
Ainda assim sobrevivi e, libertado em frangalhos, fui superar os traumas numa comunidade alternativa para a qual me convidaram antigos companheiros secundaristaa. Durante um ano recuperei as forças e o bom ambiente entre quatro paredes me permitia ignorar que, fora delas, o Brasil que eu amara ia deixando de existir.
Quando a comunidade se dissolveu e tive de encarar aquela realidade detestável, morando com a companheira numa quitinete e amaldiçoando meu trabalho numa agência de comunicação empresarial, novamente cogitei o exterior como alternativa. Mas, já não tinha contatos que me permitissem viajar com segurança enquanto meus processos ainda tramitassem nas auditorias militares.
Ademais, caiu-me a ficha de que nem sequer conseguiria tirar passaporte italiano, embora meu avô paterno fosse de tal nacionalidade. Não tinha como comprovar isto com documentação de lá nem como pagar a tradução de toda a papelada daqui para aquele idioma.
Resignei-me a esperar, mas aí foi tarde demais: os militares já não conseguiam fazer a economia brasileira crescer no ritmo necessário e dava para perceber que, mais dia, menos dia, devolveriam o abacaxi para os civis.
A esperança em dias melhores ressurgiu. E logo eu estava comparecendo a cada uma das manifestações pelas diretas-já em São Paulo, até receber novo balde de água fria quando a emenda Dante de Oliveira foi rejeitada por uma Câmara Federal tão desfigurada como a atual.
Ou seja, eu também teria debandado se pudesse, principalmente na segunda metade da década de 1970. Mas, não sem dor no coração nem seduzido pela possibilidade de enriquecer; apenas por detestar o que o Brasil se tornara e não estar vendo perspectivas de melhoras. Quando estas surgiram, ainda que meio ilusórias, desisti definitivamente da evasão.
O inesquecível futebolista Sócrates, face à perspectiva de ganhar rios de dinheiro na Fiorentina, prometeu, em plena manifestação das diretas-já no Vale do Anhangabaú, recusar a proposta italiana e permanecer no Brasil para reconstruir o país caso a eleição direta para presidente fosse restabelecida. Para mim também a perspectiva de livrar nosso povo da ganância capitalista era muito mais atraente que a de ser um estranho numa terra estranha.
E o que é pior: a esquerda que ora prevalece é a mais inadequada possível, empenhada apenas em maquilar o capitalismo, tornando-o palatável para os explorados, humilhados e ofendidos, ao invés de recolocar em pauta a substituição dessa competição canibalesca de todos contra todos pela priorização do bem comum e da união das gentes para a instauração de um regime de liberdade e justiça social plenas.
Em 1968, uma canção da peça Arena conta Tiradentes constatava: Eu sou brasileiro, mas não tenho meu lugar/ pois lá sou estrangeiro, estrangeiro no meu lar.
Fico me indagando se um dia os brasileiros teremos de conversar com nossos filhos e netos nos idiomas das nações prósperas que os acolhem.
Só seremos realmente felizes quando voltarmos a ser donos do nosso nariz e do nosso país, ao invés de nos conformarmos em virar estrangeiros em lares alheios. (por Celso Lungaretti)
2 comentários:
E o que me entristece, também profundamente: em pleno século 21, ainda ver pessoas morando nas ruas, sem direito a teto, emprego e alimento. Ver jovens e crianças ainda vendendo balas pelas ruas, ao invés de estarem estudando.
Ver o SUS emporcalhado por conta de "representantes dos cidadãos" agirem como um dos piores criminosos que existem na face da terra.
Mas a hipocrisia e a falta de respeito, lamentavelmente permanece com força no Brasil e continuarmos agonizantemente atrasados.
Se os criminosos conseguem dormir em paz, eu não consigo e jamais conseguirei!!!
CORO (baixinho):
Estou só. Sempre estive só.
Aprendi e agora sei:
só dois homens me seguiam,
espias do Vice-Rei!
https://www.mediafire.com/file/k2m79kbrm9syxy3/Arena+Conta+Tiradentes,+Augusto+Boal+e+Gianfracesco+Guarnieri.pdf/file
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