sábado, 14 de dezembro de 2024

"EU NUNCA IMAGINEI QUE UM DIA IRIAM ME ODIAR, ME XINGAR" (GILBERTO GIL, EXAGERANDO NO CHORORÔ)

Aos 82 anos de idade, o Gilberto Gil ou está tendo lapsos de memória ou não se importa em declarar nas entrevistas aquilo que mais lhe convém no momento atual (e não, necessariamente, a verdade.

Assim, participando do programa Conversa com Bial, da TV Globo, ele acaba de exagerar sua indignação com as grosserias de bolsominions, citando as recebidas de alguns torcedores brasileiros que hostilizaram a ele e à esposa Flora Gil durante a Copa do Mundo do Catar:
Eu nunca imaginei que um dia iriam me odiar, me xingar. E agora isso acontece o tempo todo, especialmente pela internet.
Pior, muito pior, foi a rejeição que ele e Caetano Veloso sofreram nos anos 60, ao mudarem de lado na guerra que os expoentes da MPB tradicional moviam contra a invasão do chamado som universal, influenciado pelos Beatles e que, além de uma maior liberdade temática, admitia a utilização de guitarras elétricas

Tudo começou quando compareceram ao 3º Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, realizado entre 30 de setembro e 21 de outubro de 1967, com visual hippie e apoiados por músicos de iê-iê-iê (os Mutantes acompanharam Gil e sua Domingo no Parque, enquanto os Beat Boys faziam o mesmo para o Caetano Veloso e sua Alegria, Alegria.

Ambas foram muito vaiadas e obtiveram classificações inferiores (2º e 4º lugar, respectivamente) às que eram esperadas. 
E foi só uma marolinha, se a compararmos ao tsunami de um ano depois, quando a radicalização política passara a turbinar de forma poderosa a musical, e vice-versa.

O acerto de todas as contas se deu no III Festival Internacional da Canção da Rede Globo, que transcorreu em meio a passeatas que degeneravam em batalhas campais, mortes de opositores da ditadura, denúncias de torturas, ações armadas da esquerda, atentados dos grupos paramilitares de direita.

Os nervos já estavam à flor da pele na eliminatória paulista, que teve lugar no  Teatro da Universidade Católica de São Paulo, no dia 15 de setembro. Foi quando os baianos apresentaram composições que faziam uma correção de rumo no tropicalismo. Ao lançarem-no, no ano anterior, pareciam pregar o desengajamento dos jovens da política revolucionária, por que não?

modelo 1968, entretanto, veio fortemente influenciado pela Primavera de Paris, o movimento neo-anarquista que levou a França às portas da revolução.

Aliás, foi um slogan das barricadas parisienses o ponto-de-partida da composição inscrita por Caetano Veloso no III FIC: É proibido proibir. O estribilho já veio pronto, mas os versos que ele criou foram corrosivos, geniais: Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças, livros, sim/ E eu digo sim/ Eu digo não ao não/ Eu digo, é proibido proibir.

Gilberto Gil seguiu o mesmo diapasão em Questão de Ordem, enfocando situações vividas pelos contestadores agrupados nas comunidades alternativas da Europa:

Se eu ficar em casa/ Fico preparando/ Palavras-de-ordem/ Para os companheiros/ Que esperam nas ruas/ Pelo mundo inteiro/ Em nome do amor.

A maior parte da esquerda brasileira via com desconfiança esse anarquismo de classe média do 1º mundo; e com franca hostilidade as roupas coloridas, os cabelos desgrenhados, a utilização das  sacrílegas  guitarras elétricas.

Preferia os ritmos nativos, do samba carioca à riqueza musical nordestina; e o visual bem comportado, com os intérpretes se apresentando discretamente para não atrapalharem a compreensão da mensagem que os versos transmitiam. Era esta a tendência majoritária na eliminatória paulista.

Quando da reapresentação das cinco escolhidas para a final da fase brasileira, marcada para o Rio de Janeiro, Caetano Veloso, que já estava indignado com a não-classificação da música de Gil, explodiu de vez, face às ensurdecedoras vaias que o impediam de interpretar adequadamente É Proibido Proibir.

Então, enquanto os Mutantes continuavam tocando uma trilha musical improvisada, Caetano fez um longo discurso, que foi depois lançado em disco com o título de Ambiente de Festival

Eis alguns trechos:
Mas, é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música, um tipo de música que não teriam coragem de aplaudir no ano passado. Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. 
Quem teve a coragem de assumir a estrutura do festival e fazê-la explodir (...) foi o Gilberto Gil e fui eu. 
O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira.

Gilberto Gil está comigo pra nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas estruturas. E vocês? Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos.

Esta foi a intolerância com que Gil se defrontou então. Não há termo de comparação com as vaias e xingamentos dos quais ele se queixa agora. 

Afinal, mesmo no auge do circo de horrores bolsonarista, nada ocorreu no front cultural com gravidade equivalente ao espancamento do elenco da peça Roda Viva pelos mentecaptos do Comando de Caça aos Comunistas em julho de 1968.

Gil e Caetano, ademais, foram presos no finzinho de 1968 e presos passaram os primeiros meses de 1969. 

Eu ocuparia, em junho, a mesma solitária da PE da Vila Militar na qual um deles se desesperava, submetido a sucessivas humilhações, conforme um velho sargento fazia questão de contar aos recrutas, suficientemente próximo para eu ouvir cada palavra  (por Celso Lungaretti)

2 comentários:

Angelo Genovesi disse...

Pois é, Celso.
Lamentavelmente há muitos que não escondem a enorme alergia ao passado, só que felizmente ainda há muitos que mantém viva a memória dos momentos que exigiram um esforço enorme por parte da geração que se mantém digna e firme na história.
Um abração para você!

celsolungaretti disse...

Pra vc também, meu caro Angelo!

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