Um dos panfletos mais influentes produzidos pela humanidade em todos os tempos, o Manifesto do Partido Comunista, escrito por Marx e Engels em 1848, começa destacando uma verdade milenar que, paradoxalmente, ele próprio faria sucumbir adiante:
"A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada, uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito".
A história da luta de classes conduziria, segundo Marx e Engels, ao momento em que a classe explorada (o proletariado), ao pôr fim à dominação que lhe impunha a classe exploradora (a burguesa), já não teria sob si uma nova classe explorada em gestação, pronta para substitui-la.
Dito de outra forma, os proletários seriam os últimos explorados e, ao se libertarem, libertariam a humanidade inteira.
A própria sociedade dividida em classes deixaria de existir, dando lugar a uma sociedade sem exploradores nem explorados, na qual todos os cidadãos colaborariam solidariamente para o bem comum e passariam a dividir de maneira mais equânime os frutos do trabalho das gentes: cada ser humano ofereceria a contribuição que fosse capaz de dar para a coletividade e receberia da coletividade aquilo de que necessitasse para uma existência plena e gratificante.
De quebra, a produção coletiva supriria integralmente tudo de que os seres humanos necessitam para sua bem-aventurança, com, ademais, a vantagem de uma redução cada vez maior do número de horas trabalhadas para que cada cidadão cumprisse sua parte no esforço coletivo.
Livres do tacão da necessidade, todos teríamos tempo livre para sonharmos e tentarmos viabilizar nossos sonhos. O ponto de chegada da construção de uma nova sociedade, realmente humana, assim foi expresso no jargão marxista: de cada um, de acordo com sua possibilidade, a cada um, de acordo com sua necessidade.
Algo assim, entretanto, só funcionaria se envolvesse todos os humanos. Havendo diferenças significativas entre os benefícios disponibilizados .para cada contingente, voltariam as disputas, as guerras, as fronteiras, os exércitos, etc. Os mais fortes tornariam a levar vantagem sobre os mais fracos e a humanidade não sairia de sua pré-História.
Tal pesadelo começou a tornar-se realidade exatamente quando foi bem-sucedida a primeira de todas as revoluções socialistas, em 1917. A Rússia teve de assegurar a sobrevivência física, caso contrário seus sonhos morreriam juntamente com ela, esmagados por inimigos decididos a tomar-lhe pela força o que possuíssem a mais do que eles outros.
Assim voltaram, um a um, todos os horrores dos quais ela havia se livrado.
E, por ser um país com desenvolvimento econômico tardio se comparado com as grandes nações europeias e os EUA, teve de efetuar enorme esforço para, antes de mais nada, alcançar o estágio de crescimento de seus adversários capitalistas.
Mais: já prevendo um enfrentamento nos campos de batalha com a poderosa Alemanha nazista, os soviéticos tiveram não só de desenvolver sua economia a todo vapor, queimando etapas, como também de obter os resultados desejáveis o quanto antes, para aguentar o tranco quando chegasse a guerra anunciada.
Depois de tudo que os trabalhadores russos haviam suportado desde a desastrosa participação na 1ª guerra mundial, passando pela primeira revolução socialista da História, pelo enfrentamento da devastação e da miséria legadas pelo czarismo e pela resistência a uma formidável aliança contra si de muitos inimigos externos e internos, só mesmo um Estado policial conseguiria arrancar deles os novos e descomunais esforços exigidos pela corrida para reduzir (eliminar era impossível) seu atraso material com relação à Alemanha.
Confirmava-se integralmente a profecia de Marx: só os países mais avançados em termos econômicos estavam prontos para a construção do socialismo.
Os outros teriam, antes disto, de irem reduzindo pouco a pouco sua inferioridade em estágio de desenvolvimento.
Foi uma das grandes tragédia do século 20: a descaracterização dos países que tentaram construir o socialismo a partir da precariedade e do atraso. Quanto muito chegaram até o capitalismo, sendo, ainda, seus dramas explorados ad nauseam pela indústria cultural para predispor o resto da humanidade contra a esquerda, como se o socialismo num só país fosse a sociedade sonhada por Marx e Engels e não, praticamente, o seu oposto.
Todas essas experiências históricas acabaram degenerando em nomenklaturas: sociedades nas quais persiste (às vezes até ampliada) a desigualdade econômica, e tendo como segmento privilegiado não mais uma classe, mas sim uma casta. No caso da União Soviética tal papel coube aos membros destacados do Partido Comunista, enquanto na Venezuela quem manda são altos militares. O povo apanha e obedece.
A profecia sobre o substituísmo, de autoria do jovem Trotsky, cumpriu-se: primeiramente, o Partido Comunista substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o Partido Comunista; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.
O tirano primeiro foi Stalin, e os Maduros da vida não passam de seus filhotes: mantêm os compatriotas na penúria ou obrigados a vazarem para construir uma vida melhor no exílio, enquanto eles próprios se locupletam com poder e luxo dignos de nababos.
Isto implicava que a tarefa à qual Trotsky dedicara toda sua vida adulta não fora cumprida e a faina deveria ser praticamente recomeçada do zero. Mas, ele era suficientemente honesto para admitir uma verdade tão dolorosa. Já os Maduros da vida não têm nem a mesma honestidade intelectual, muito menos o mesmo espírito igualitário. Preferem vender uma caricatura de revolução para o mundo como se fosse a própria revolução. Então, no atual tiroteio entre Brasil e Venezuela não há heróis, só vilães.
De um lado os que fazem um capitalismo ligeiramente atenuado em seus malefícios e destrutividade passar por algo próximo dos ideais esquerdistas (ele tem a ver, isto sim, com o reformismo de Edouard Bernstein, que a Rosa Luxemburgo reduziu a pó de traque no seu clássico Reforma ou Revolução).
Do outro uma brutal nomenklatura que cria confusão utilizando falaciosamente retórica esquerdista para parecer aparentada com o socialismo marxista, que, contudo, era eminentemente libertário. Os papas do marxismo jamais endossaram estados policiais como o Leviatã de Putin e o estrupício do Maduro. (por Celso Lungaretti)
4 comentários:
Olá, CL
Não podemos olvidar as sanções criminosas dos EUA :
https://www.brasildefato.com.br/2020/10/08/em-seis-anos-de-bloqueio-venezuela-foi-alvo-de-150-sancoes-e-11-tentativas-de-golpe
https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/29/maduro-diz-que-pedira-aos-paises-sul-americanos-que-solicitem-o-fim-das-sancoes-dos-eua-a-venezuela.ghtml?origin=serp_auto
https://www.pagina12.com.ar/778307-brasil-un-veto-suicida
https://espanol.almayadeen.net/Articulos/1941450/los--banalizadores--del-bloqueo-contra-cuba
Companheiro, como revolucionário eu só teria algum motivo para me interessar por tal pendenga se o poder estivesse em mãos do povo venezuelano. Mas, como é uma camarilha de militares que se mantém no poder pela força e concede a si própria os privilégios que usurpa do povo, então é a esse povo que cabe revoltar-se contra a exploração e a opressão. De resto, não tenho nada contra os EUA que não tenha contra os demais governos que exercem a dominação burguesa. Minha luta é contra o capitalismo internacional e não contra tal ou qual nação onde ele prevalece. Nacionalismo é relíquia do tempo do "O petróleo é nosso". Hoje a fila andou e nossa luta é pela revolução internacional, pois se não cortarmos todas as cabeças da hidra, ela continuará reerguendo-se após as derrotas e anulando as nossas vitórias.
Cuba é, então, um amálgama da antiga União Soviética com a Venezuela: um segmento privilegiado, uma casta de membros destacados do Partido Comunista e de militares de alta patente (todos do Partido Comunista). Um estado policial, com informantes espalhados por cada quadra do país. Há, inclusive, um dito popular cubano que diz que se em uma mesa de dominó (muito jogado nas ruas do país) estiverem sentados 4 cubanos, 3 serão chivatos (informantes do governo) e 1 será membro do CRD (Comitê de Defesa da "Revolução"). O país está infestado deles e o povo nas ruas não ousa falar sobre política ou tecer uma mísera crítica ao governo. Apenas se soltam quando estão com turistas estrangeiros e sem nenhum outro cubano por perto, como dentro de um táxi, por exemplo. Há milhares de presos políticos padecendo os piores castigos nas masmorras do país e me causa profundo asco o silêncio sepulcral da esquerda brasileira. E o que é pior: o apoio político e econômico a essa tirania. Gostaria que você, Celso, tivesse a oportunidade de conhecer Cuba, principalmente Havana, e percorrer bairros como Centro Havana, Cayo Hueso, Bairro Chino, Vedado, Havana Velha, etc., entrar naqueles cortiços, chamados de Solares por lá, e falar com o povo. Tenho certeza absoluta que voltarias mudado, como eu, para o Brasil. Os figurões da esquerda brasileira, incluindo músicos, atores, políticos, quando vão a Cuba desfrutam do bom e do melhor nas andanças palacianas, estando divorciados da realidade popular. O tal embargo é apenas uma desculpa pronta para a incompetência no gerenciamento do país. Há produtos de todos os países sendo comercializados em Cuba, inclusive há inúmeros carrões de luxo importados e de último tipo (experimente circular por Miramar, parte rica de Havana), todos nas mãos da casta do Partido Comunista, dos militares de alta patente e de seus parentes que estão em Cuba, pois a maioria encontra-se morando na Europa e nos Estados Unidos, desfrutando do capitalismo. Que ironia do destino!
https://www.ihu.unisinos.br/645629-da-utopia-a-distopia-artigo-de-frei-betto
https://jacobin.com.br/2024/11/lenin-e-o-lazer/
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