Foi Karl Marx quem cunhou a expressão capital fictício como sendo aquele representado por créditos a receber em data futura dos devedores. A palavra fictício é usada em sentido figurativo e significa a incerteza do resultado desejado pelos credores de realização objetiva de retorno acrescido do capital emprestado.
Já os juros, como se sabe, representam a remuneração do capital dado pelo credor emprestador ao devedor que paga tal remuneração acrescida da devolução do valor líquido recebido por conta do empréstimo por ele recebido.
Os donos dos meios produtores de mercadorias, a burguesia industrial, diferentemente dos banqueiros, costumam dizer - sub-repticiamente - que o capital fictício e os juros são parasitários porque ganham dinheiro sem nada produzir. Entendem, os primeiros, que ao produzir mercadorias estão contribuindo para a vida social e que os banqueiros são meros usurários e usurpadores dos esforços dos empreendedores da indústria, da pecuária e dos serviços.
Antes mesmo de adentrarmos na questão do que representa, hoje, o capital fictício e os juros, devemos analisar dois aspectos dessa relação:
1) a atividade empreendedora dos produtores de mercadorias e serviços representada pelo ciclo D=M=D+ - dinheiro que se transforma em mercadoria que gera mais dinheiro -, nada mais é do que a fórmula capitalista de acumulação do capital pela extração de mais valia de quem produziu as mercadorias pela via do trabalho abstrato;
2) a relação dos banqueiros emprestadores de dinheiro obedece ao intento de remuneração do capital como forma de manutenção aumentada do capital sob a forma de juros, apostando no sucesso da vida mercantil empresarial.
Os lucros e níveis diferenciados de taxas desses na produção e venda de mercadorias obedece ao mesmo critério de lucros, taxas e interesses dos banqueiros com relação ao capital. São faces de uma mesma moeda.
Nessa relação, e sob qualquer das duas formas ora elencadas, nada é santo, vez que se trata de uma subjugação social à lógica ditatorial do capital, que é segregacionista, contraditória, assassina da vida social, destrutiva da vida humana e ecológica, além de autodestrutiva - da forma e conteúdo - no final da linha, como ora se está a observar neste período limite da capacidade de expansão e reprodução do capital nos níveis necessários da economia, que por isso definha.
Não são benfeitores da humanidade os empreendedores, e nem meros sanguessugas os banqueiros - como costumam classificá-los os industriais, como sentimento de exploração pelos juros pagos -, vez que ambos se apropriam indebitamente do trabalho abstrato do qual dependem para obter a remuneração do capital pelos lucros e juros.
Os primeiros o fazem de modo direto e os segundos de modo indireto; e não custa acrescentar que ambos são um tipo mais confortável de escravos da lógica do capital, pois que dela se beneficiam com os confortos materiais que o capital lhes proporciona.
O capital fictício nunca fez tanto jus ao seu significado como agora, exatamente porque há uma impossibilidade concreta de restituição pelos devedores, privados e estatais, dos valores de capital tomados - a expressão de direito comercial aqui começa a se assemelhar ao seu significado popular - aos credores banqueiros ou rentistas - aqueles que aplicam capital no mercado financeiro via sistema bancário -, e até mesmo dos juros, em muitos casos.
Os empréstimos, hoje, se resumem substancialmente ao financiamento da dívida pública crescente e impagável, levando à crise da dívida, porque a atividade empresarial empacou e é muito alto o risco de financiamento dos empreendimentos da economia real - há uma crença ilusória de muitos dos rentistas de que o Estado produz valor válido.
Os banqueiros emprestam seu capital na expectativa de que os tomadores de empréstimos, assim chamados de devedores, possam obter lucros capazes de remunerar os custos do capital emprestado, juros, e os próprios lucros empresariais, e desta forma, ambos estão ligados por laços indissolúveis de dependência dos resultados obtidos no mercado onde são negociadas as mercadorias.
Em março deste ano, com a falência de Silicon Valley Bank e Signature Bank, ambos dos Estados Unidos, houve um estremecimento do sistema financeiro mundial pelo medo de contaminação do sistema bancário mundial que já sobrevive por aparelhos, o que obrigou o Federal Reserve dos Estados Unidos a um socorro de urgência na ordem de US$ 143 milhões, pequeno tapa buraco para evitar o rompimento do dique que contém a hecatombe financeira de mais adiante, já anunciada.
Tal fato assustou o mercado financeiro por medo de uma nova crise que seria gerada pelo impasse ora existente entre a desesperada expansão monetária sem lastro mesmo em meio à alta da inflação dos Estados Unidos, que implicou num aumento das suas taxas de juros oficiais para 5,5% ao ano, algo antes inimaginável.
Do mesmo modo o Banco Central Europeu está elevando as taxas de juros para 4,5% ao ano em face da necessidade de expansão monetária sem lastro como forma de tentativa de debelar a crise da depressão econômica multipolar que atinge todos os níveis da economia, tanto no âmbito fiscal como da guerra concorrencial de mercado em face de hiperprodutividade tecnológica de mercadorias sem a correspondente capacidade de compra dessa produção.
Por sua vez, a China dita comunista é tão apegada ao capitalismo e dele dependente quanto os Estados Unidos, para ficarmos apenas na citação das duas mecas do capitalismo mundial da atualidade.
A China, com sua dívida pública impagável, de 300% do PIB, instituiu a chamada nova rota da seda visando se salvar com uma hegemonia econômica junto aos países asiáticos, africanos e sul-americanos, através de empréstimos com taxas de 5% a.a, mais altas do que os 2,5% a.a do FMI. Após ter concedido empréstimos na ordem de US$ 832 bilhões, hoje se vê às voltas com uma inadimplência de cerca de USS$ 240 bilhões, vendo-se obrigada a efetuar uma rolagem de dívida que representa uma bola de neve a engolir tudo pelo caminho em não pouco tempo.
A nova rota da seda mais se parece com o terremoto no Destino do Poseidon, clássico filme de 1972, hoje não muito lembrado.
Encalha o capital mundial produtor de mercadorias por conta do encalhe da capacidade de compra causada pela perda da capacidade de compra resultante do desemprego estrutural e redução sistemática da extração de mais-valia global e do lucro; que encalha a receita fiscal; que torna o capital fictício uma miragem que se dissolve num deserto seco, numa disrupção definitiva do processo de relação social capitalista.
São dois cegos batendo numa mesma porta.
Indicadores econômicos calculam que a dívida pública e privada mundiais, consolidada perante credores internacionais, esteja em US$ 226 trilhões - ano de 2020, que em nossa moeda seria de mais de R$ 1 quatrilhões - e que vem aumentando, é montante incompatível com o PIB mundial calculado pelo Banco Mundial de US$ 71,6 trilhões.
Se considerarmos que nesse PIB mundial estão incluídas as despesas correntes - manutenção da máquina governativa nos seus vários níveis e custos de produção de mercadorias - dos países nele incluídos, vamos deduzir, facilmente, numa conta macroeconômica rápida e simplória, que até mesmo os juros dessa dívida estão se tornando impagáveis. Muito brevemente não haverá dinheiro para o tal serviço da dívida, nome pomposo para os juros.
Vivemos sob uma bola de neve de capital fictício e sua rolagem para uma data futura na qual a verdade da insolvência de tal dívida tornar-se-á evidente e substancialmente previsível, e esse será o dia do início do juízo final do capitalismo.
Essa é a explicação pela qual o capital ocioso mundialmente está sendo aplicado em títulos da dívida pública com remuneração baixíssima para os países de moeda forte, e até mesmo com juros decrescentes em alguns casos, posto que há uma ilusão de que ditos títulos merecem credibilidade. (por Dalton Rosado, continua neste post)
Um comentário:
Brilhante!
"Encalha o capital mundial produtor de mercadorias por conta do encalhe da capacidade de compra causada pela perda da capacidade de compra resultante do desemprego estrutural e redução sistemática da extração de mais-valia global e do lucro; que encalha a receita fiscal; que torna o capital fictício uma miragem que se dissolve num deserto seco, numa disrupção definitiva do processo de relação social capitalista".
Esperando a continuação.
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