domingo, 29 de outubro de 2023

APÓS UM ANO DA DERROTA DE BOLSONARO, QUASE NADA MUDOU


 "Tendo os olhos voltados para o passado e formando uma grande aliança com o status quo nacional, o lulismo, por sua vez, venceu muito mais enquanto um veto às forças retrógradas, ao obscurantismo, à falta de pudor pela vida e à devastação ambiental. 

Mas não conseguiu colocar-se enquanto um movimento inspirador de transformações. E aí reside todo o drama do momento. 

A eleição de Lula só foi possível por um grande acordo de cúpula, uma articulação nas altas esferas do capitalismo, passando pelo STF, banqueiros, tucanos históricos e grande capital internacional. Foi o grande pacto nacional já vaticinado por Romero Jucá, cuja meta é reestabelecer os marcos institucionais pré-junho de 2013, trazendo de volta a reprodução sossegada do valor. 

Noutras palavras, restaurar a pax neoliberal, cujo ápice se deu no segundo governo do Lula, e desacelerar a luta de classes. 

No entanto, vontade é uma coisa, efetividade é outra. Quem de fato comanda o ritmo dos acontecimentos não é o político x ou y, ou mesmo a nanica burguesia brasileira, mas a economia capitalista, terreno completamente objetivo e com sua própria legalidade. E, nessa seara, até mesmo os capitalistas estadunidenses e europeus estão apavorados, sentindo o buraco abrir-se cada dia mais. 

Os prenúncios de cataclisma ficam mais evidentes e as tensões geopolíticas recolocam no plano mundial o que vem acontecendo no plano micro da economia do dia-a-dia. 

Aumento do custo de vida, desabastecimento, fome –a qual agora assombra até mesmo a classe média branca europeia– e, finalmente, a sombra da guerra mundial mostram a aproximação de uma depressão titânica capaz de engolir a tudo e todos, cujo desfecho é imprevisível e cujo impacto no Brasil poderá fortalecer a extrema-direita oposicionista.

Para além disso, a reorganização econômica do Brasil para um regime agromineral-extrativista segue em frente. Bolsonaro foi o representante mais bem acabado desta nova lógica porque ele simplesmente a colocava sem peias, sem duplo discurso e sem qualquer tipo de vergonha. Lula retorna para dar um verniz civilizado para esta nova lógica, mantendo-a, mas com uma capa racionalista.

Nisso reside outro ponto débil com potencial para engolir o novo presidente, pois quanto mais avança a nova matriz econômica, mais fortes ficam as forças do atraso e, correlatamente, sua expressão política no Brasil, o bolsonarismo. 

A precarização das relações de trabalho, a flexibilização das leis ambientais, a dilapidação da indústria e das empresas públicas, a crise urbana com a explosão da violência, tudo isso fortalece o tripé reacionário do agronegócio, igrejas evangélicas e militarismo. Terá Lula condições de mexer no nervo disto e reverter as condições regressivas no Brasil? Eu diria que não. 

Não apenas o agora presidente eleito ajudou neste processo quando de suas passagens pelo governo federal, como também está hoje afiançado de modo íntimo com os grandes capitalistas brasileiros que almejam justamente o avanço do dito cujo, embora, como dito, num ritmo menos irascível. Seria preciso romper e radicalizar à esquerda, mas isto seria dissolver o grande pacto e recolocar a luta de classes noutro nível. 

Então, o futuro se prenuncia tenebroso. A extrema-direita seguirá mobilizada e o novo governo, centrado no passado e acreditando ser possível uma conciliação já caducada, aprofundando o modelo de espoliação do pais, estará muito em breve em face de uma profunda impopularidade e frustração. Neste momento, o pior poderá acontecer e os derrotados de hoje talvez voltem reenergizados."

Quase um ano atrás, esse texto, publicado um dia após a vitória de Lula no segundo turno das eleições para presidente, analisava o futuro do novo/velho presidente. Pouco precisa ser dito a respeito das mobilizações bolsonaristas dos meses subsequentes, cujo ápice viria a ser o infame 8 de Janeiro, a micareta verde e amarela usada até hoje como espantalho por lulistas de todos os matizes. Na realidade, o quebra-quebra em Brasília foi mais explosão de impotência que ameaça real, pois a tentativa concreta e consequente de reverter as eleições mediante bloqueios das estradas e pelo levante do agronegócio não surtiu efeito. 

Lula só pode vencer porque se amarrou a um pacto impossível de ser cumprido. Um ano depois, isso é visível para qualquer um na paralisia governamental e em sua total rendição ao atraso atrasante pitorescamente representado no Congresso Nacional pelo Quadrilhão, ops, Centrão. O presidente não governa, faz truque de circo para engambelar o distinto público. Por quanto tempo seus caricatos malabarismos ainda farão efeito é difícil de prever, mas basta andar um pouco pelas ruas de nossas cidades e ter ideia do buraco cada vez maior de nossa crise. 

Enquanto isso, lá vão os piores ministros do governo, Dino e Haddad, contracenar na palhaçada. O primeiro batendo nos indigentes bolsonaristas que passam pela sua frente; e o segundo ao destilar seu interminável blablabla tecnocrata por todo lugar que vai. Na realidade, os melhores ministros de Lula são os do Centrão: ao menos esses têm consciência que a nossa realidade é insanável e buscam apenas o cinismo da pura pilhagem, ou seja, não buscam enganar ninguém. 

A única coisa a se celebrar nesse período foi a derrocada de Bolsonaro, mas mesmo esse está longe de ter pago sua imensa dívida com a Justiça e o povo brasileiro. Ao que parece, tem tudo para continuar sem pagar, com a crucial ajuda de Lula. Afinal, todo bom comediante precisa da sua escada. (por David Emanuel Coelho)


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