sexta-feira, 1 de setembro de 2023

OS REVOLUCIONÁRIOS E OS MILITARES BRASILEIROS FORAM EXTRAIR LIÇÕES DE GUERRILHA URBANA DE UM MESMO FILME

Para não cair no ramerrão, vou desta vez aproveitar uma crítica alheia (superlativa!) para dar aos leitores uma ideia da grandeza cinematográfica, histórica e política de A batalha de Argel

Trata-se de um filme de 1966 que foi, naquele momento, visto com muita atenção pelos líderes esquerdistas que pretendiam lançar aqui a luta urbana; adiante, já proibido pela censura, serviu como referência também para os militares incumbidos de combatê-la, que o assistiram em exibições privadas.

Seria difícil encontrarmos melhor confirmação da fidelidade com que Pontecorvo mostrou um recorte da lendária luta armada anticolonialista da Argélia, mais precisamente o do crescimento da guerrilha urbana em 1957.

Pena que os fardados aparentemente foram alunos mais aplicados: 
— enquanto os guerrilheiros brasileiros não alcançamos a vitória, os do norte da África a conquistaram em 1962, com a assinatura de um cessar-fogo, seguido de plebiscitos nos quais o povo dos dois países aprovou a independência argelina;
já o trecho do filme em que os militares trocam ideias sobre a necessidade de cortar a cabeça da Frente de Libertação Nacional, seguida da intensa e finalmente exitosa caçada ao guerrilheiro Ali La Pointe, encontra paralelo na obsessiva perseguição aos dois Carlos, o Marighella e o Lamarca, igualmente marcada por torturas atrozes.    

A reprodução do texto do crítico português Francisco Rocha é também a homenagem que lhe presto pelo 15º aniversário do seu magnífico blog, que nasceu My Thousand Movies e já evoluiu para My Two Thousand Movies (acessem-no aqui). 

Ele e eu tivemos a mesma ideia no mesmo mês, agosto de 2008. E, pelo menos no que diz respeito ao cinema, há muitos outros pontos comuns entre nós. (CL)
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PONTECORVO FAZ-NOS ENTENDER A PODRIDÃO DA GUERRA
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Um filme comissionado pelo governo argelino, que mostra a revolução argelina dos dois lados. A Legião Francesa tinha deixado o Vietnã derrotada, e tinha algo a provar. Os argelinos procuram a independência, e dá-se o choque. 

Os franceses usam a tortura, e os argelinos respondem com o uso de bombas tradicionais. O filme traz um olhar desagradável sobre a guerra, e todos nela envolvidos.

Marco de Gillo Pontecorvo sobre o anticolonialismo, é provavelmente o mais famoso filme sem verdadeiros imitadores (Z e outros thrillers políticos são bem diferentes), em grande parte porque os países coloniais costumavam ser os países financiadores desses filmes. Aqui os financiadores eram o país que lutava pela independência, o que traz um ponto de vista totalmente diferente para o cinema político. 

Os argelinos são mesmo o centro das atenções do filme, mas mesmo isto não é o que nos faz simpatizar com eles. Pontecorvo faz-nos entender a podridão da guerra, que nenhum dos lados é inocente, pois os argelinos fazem explodir bombas em cafés que matam civis e os franceses, com a sua tecnologia massiva, também matam civis.

Antes das grandes revoluções serem televisionadas, o cinema político permitia que as grandes populações contemplassem a uma certa distância as maquinações e as consequências das agitações violentas. Em A batalha de Argel, os avanços técnicos permitiram à narrativa fundir-se com a estética documental e formular um novo tipo de realismo.  
Pontecorvo mergulha nesta estética, no que pode ser o maior filme sobre a insurreição, perfilando a luta da Argélia pela independência em tal detalhe e agitação que muitas cenas parecem tiradas diretamente de um telejornal da atualidade.

Ele se desliga dos aspectos mais emocionais e adota a tática da câmara no ombro, não apenas para estabelecer o efeito documentário, mas também para fazer sobressair o impacto de cada tiroteio ou explosão como uma experiência profundamente pessoal. 

Ação e reação são inevitáveis, assim como a banda sonora memorável de Ennio Morricone, utilizando o mesmo tema para cada um dos lados, é perturbadora.  Três nomeações ao Oscar e três prêmios no festival de Veneza, incluindo o Leão de Ouro
Obs: para acessar os vídeos do PEQUENO FESTIVAL DE
FILMES ANTICOLONIALISTAS, clique nos seus títulos:

2 comentários:

SF disse...

***
Posso estar errado, mas este é melhor filme, artisticamente falando.
Esse menino, Pontecorvo, é um grande cineasta!
Destaco a cena da escadaria, clássica.
Agora, a sequência das bombas foi cinema de verdade.
Depois dela a qualidade cinematográfica decai.
***
Gostei da maneira como o tenente-coronel foi mostrado.
Eles são assim mesmo.
Psicopatas as vezes parecem muito simpáticos e dignos.
Até você saber do que eles são capazes.
***
Já os caras da revolução não mereceram um aprofundamento, manteve um distanciamento semelhante ao do mito.
Algo clichê.
Os donos da bola que bancaram o filme (e que recolhiam os impostos no lugar dos franceses) não deixaram o Pontecorvo chegar muito perto.
***
O filme prova definitivamente por que as mulheres vivem mais que os homens...
Era ontem, hoje é e amanhã será verdade absoluta.
***
Enfim, bom cinema!
Valeu pela dica.
*

P.S. O comportamento dos revolucionários me faz pensar no que Camus falava a respeito da vida e se ela vale a pena ser vivida.
A resposta dele era - ser rebelde.
Deve ter sido a maneira de ele dizer sutilmente que a vida só vale a pena se for uma luta pela liberdade.
***

celsolungaretti disse...

Prezado SF,

depende do estilo de cinema que vc prefere. 'A batalha de Argel" é uma reconstituição praticamente exata de um episódio histórico, inclusive com atores pinçados entre o povo. Tem seu encanto mas, como o néo-realismo, acho árido demais, um semi-documentário.

"Queimada" não reconstitui um episódio em particular, se baseia em vários para deles extrair linhas mestras. É claro que nunca existiu um agente do colonialismo como o personagem William Walker, liderando as duas fases do processo: a articulação de uma independência política tutelada pela Inglaterra, a serviço da Coroa, e depois a repressão à guerrilha que se ergueu contra a dominação econômica britânica, a serviço de empresas de comércio exterior.

Eu prefiro uma história essencializada como a de "Queimada" do que minuciosamente reconstruída como a de "A Batalha de Argel". E atores como Marlon Brando são um espetáculo à parte, a interpretação dele é exuberante.

Também o Glauber lidava muito bem com personagens que representavam grupos ou classes sociais. Em "Terra em Transe", p. ex., Vieira simbolizava os políticos populistas, Diaz era obviamente o Carlos Lacerda, o poeta Paulo Martins encarnava a classe média esquerdista e assim por diante. Adorei a fórmula quando vi o filme pela primeira vez, creio que em 1967. Então, quando assisti "Queimada", dois anos mais tarde, essa jogada não me surpreendeu.

"Terra em Transe" e "Queimada" estão entre os meus filmes preferidos de todos os tempos, exatamente por seu caráter mais abrangente e por suas inovações em termos de linguagem cinematográfica. Minha geração queria dar um novo enfoque aos acontecimentos e introduzir uma nova forma de apresentar tal conteúdo ao público.

O Glauber desde o início tendeu para isto, enquanto o Pontecorvo era cria do néo-realismo e parece ter sofrido forte impacto dos acontecimentos de 1968. Entre "A Batalha de Argel" e "Queimada" parece existir não um intervalo de três anos, mas sim de três décadas.

De resto, eu li muito o Camus e, de certa forma, ele me ajudou a consolidar o entendimento de que, na sociedade burguesa, a vida não valia a pena ser vivida.

Lá pelos 16 anos eu já percebi que não queria fazer faculdade para se engenheiro, ganhar bem, casar com uma moça prendada, ter carrão e casa de veraneio, todas essas coisas com que meus colegas de escola sonhavam. A mesma conclusão a que o Raul Seixas chegaria aos 27 anos, quando já tinha "vencido na cidade grande" (no caso dele, o Rio de Janeiro) e percebeu que tudo isso era "um saco", conforme contou em "Ouro de tolo".

Eu, por ser paulistano, nem precisei de um longo percurso para chegar nas portas do sucesso. A facilidade com que estava conquistando meus objetivos escolares era suficiente para eu saber que, seguindo no "bom caminho", obteria inevitavelmente o que a sociedade burguesa tinha para me oferecer.

Só que não me via nesse papel. O que eu queria, não se comprava com dinheiro. Era fazer algo que servisse também para minha gente, não apenas para mim. Não sabia direito como, mas queria mexer com a História.

Não cheguei à revolução por acaso, eu a estava procurando. E foi por isto que jamais voltei atrás da opção revolucionária que fiz na virada de 1967 para 1968. Já decidira definitivamente que a vida não valia a pena ser vivida numa sociedade de classes.

Não havia para onde voltar, eu já queimara todas as pontes. E quando a revolução na qual apostara todas as minhas fichas não teve êxito, passei o resto da vida ainda perseguindo-a, enquanto usava todo o meu jogo de cintura para sobreviver dentro da sociedade burguesa sem a ela pertencer espiritualmente, sempre com o pé dentro dela e a cabeça fora, voando longe.

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