domingo, 3 de setembro de 2023

'ZULU': HÁ MAIS NO QUADRO DO QUE OS ANTOLHOS IDEOLÓGICOS PERMITEM VER

Este pequeno festival de filmes anticolonialistas trouxe até agora somente visões simpáticas às vítimas da dominação europeia, as duas mais sofisticadas de Gillo Pontecorvo (A batalha de Argel e Queimada) e outras duas mais ingênuas e ardentes, nas quais os países libertados reverenciaram seus heróis (O Leão do deserto e O tempo dos leopardos). 

Deixei para o final um filmaço que até hoje provoca muitas discussões, não sendo exatamente nem a favor nem contra o colonialismo, mas, acima de tudo, uma exaltação do heroísmo de um punhado de homens que resistiram a um inimigo cuja superioridade numérica era imensa.

Trata-se de Zulu (1964), que nos entrega sequências de batalha poderosas, evidenciando o horror de todas as guerras, e que parece ter tentado escapar de rótulos simplistas omitindo informações desfavoráveis a ambos os lados.

Foi realizado por um competente diretor nascido nos EUA, Cy Endfield, que, tanto quanto Charlie Chaplin, teve de trocar seu país pelo Reino Unido para colocar-se a salvo das perseguições macartistas. Ele fez o roteiro a partir de um artigo do jornalista John Prebble que o impressionou muito.
Assim como seu personagem, o bom ator Stanley Baker tinha integrado o Corpo de
Serviços do Exército Real; sua carreira foi abreviada pela morte aos 48 anos, de câncer.
Suponho que tenham sido a desigualdade de forças e a capacidade de superação dos sitiados que o tenham empolgado na chamada
Batalha de Rorke's Drift, travada em 1879. E o mérito do filme é exatamente a reconstrução exemplar do cerco a um entreposto comercial e pequeno hospital britânico no qual uns 150 combatentes resistiram a cerca de 4 mil zulus. 

Então, é destacada a performance do tenente John Chard (Stanley Baker), do Corpo Real de Engenheiros, que lá estava para cuidar da construção de uma obra de melhoria, mas, por ter ascendido antes ao oficialato, teve o direito de assumir o comando quando surgiu a emergência, embora o outro tenente, Gonville Bromhead (Michael Caine), fosse teoricamente mais apto para uma situação de confronto, pois se tratava de um cavalariano.     

Chard é quem decide que deveriam entrincheirar-se e orienta a fortificação do entreposto, contrariamente à vontade de Bromhead, que preferia enfrentar o inimigo em campo aberto (o que, claro, seria suicídio). E acaba dando conta do recado, apesar das circunstâncias totalmente adversas em que transcorre o seu batismo de fogo.
Zulu alçou Michael Caine ao estrelato, após 18 anos fazendo pontas na TV e cinema  
Que informações ficaram faltando no filme?
— a de que, embora o Reino Zulu estivesse efetivamente iniciando uma ofensiva contra as tropas coloniais britânicas, a decisão de atacar o que não se constituía propriamente num alvo militar foi tomada intempestivamente por Dabulamanzi kaMpande, meio-irmão do rei zulu Cetshwayo kaMpande;
— a de que foi este o real motivo de Dabulamanzi desistir de continuar atacando, pois estava sendo questionado sobre se a tomada daquele entreposto justificava o número elevado de baixas que os zulus estavam tendo; e
— a de que, com a chegada de reforços, os britânicos, a pretexto de se vingarem do assassinato de pacientes do hospital, retaliaram bestialmente sobre zulus capturados ou deixados para trás por estarem feridos (além dos 385 mortos em batalha, estima-se que uns 500 tenham sido depois executados).

É possível, contudo, que Endfield jamais tenha pretendido defender o colonialismo, mas somente construir um épico empolgante.
Jack Hawkins interpretou um pastor beberrão

Então, talvez devamos conceder-lhe o benefício da dúvida: não terá ele agido assim para que os zulus fossem mostrados como guerreiros nobres que, respeitando a coragem de um inimigo que lutara bravamente, não quiseram destruí-lo quando estava fragilizado demais?

E também para que o mérito dos heróis de Rorker's Drift não fosse empanado pela brutal revanche posterior, levada a cabo pelos reforços que chegaram depois da batalha, lado a lado com alguns dos combatentes que a haviam travado?

Enfim, eu recomendo que Zulu seja assistido sem o detestável maniqueísmo que transformou a vida brasileira num inferno nos últimos anos. Colocar obras artísticas num index é coisa da Santa Madre Igreja na idade das trevas...

Afinal, como cantou Neil Young, quase sempre há mais no quadro do que os olhos podem ver. Principalmente quando os olhares são direcionados pelos antolhos ideológicos. (por Celso Lungaretti)
Obs: para acessar os vídeos do PEQUENO FESTIVAL DE
FILMES ANTICOLONIALISTAS, clique nos seus títulos:

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