quinta-feira, 10 de agosto de 2023

O CINEMA DIANTE DA CENSURA NO BRASIL E NO IRÃ

 


Funciona um cinema sob uma ditadura? E se essa ditadura for teocrática? Para dar uma resposta correta, o melhor é se basear naquilo que vivemos e conhecemos. E, nesse caso, temos duas respostas. A primeira está relacionada com a ditadura militar, justamente quando o cinema nacional tinha se encontrado com o Cinema Novo e os filmes de Glauber Rocha, Carlos Diegues e Joaquim Pedro de Andrade. Poucos anos antes do Golpe, sob o clima da euforia das Reformas de Base de João Goulart, o cinema brasileiro tem Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Os Fuzis, de Ruy Guerra e chega ao auge com Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, onde premonitoriamente já se tratava do messianismo.

Com a chegada do golpe militar, o cinema se torna introspectivo e entra na fossa e pessimismo com O Desafio, de Paulo César Sarraceni, e Terra em Transe, outro de Glauber Rocha, personificando as desventuras e desilusões da esquerda.

O cinema brasileiro tinha êxito e reconhecimento no exterior, embora não fosse muito apreciado pela classe média nacional. Os militares não proibiam, mas censuravam. Surgiu o Cinema Marginal com Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Ozualdo Candeias. Nesse clima, Glauber Rocha ganhou em Cannes, em 1969, na categoria de melhor diretor com O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Mas o cinema nacional caiu em qualidade com a versão patriota no filme Independência ou Morte, de Carlos Coimbra, e resvalou para a pornochanchada. Era o período em que o cinema para sobreviver tinha de conviver com os militares, se industrializar, trabalhar com os empresários, nem sempre dando resposta. Esse é o primeiro motivo para a queda de qualidade. 

O segundo motivo é relacionado com os últimos quatro anos de Bolsonaro, nos quais se acabou com o Ministério da Cultura, se desvirtuou e esvaziou a Ancine, querendo que o cinema sem subvenções fosse obrigado a se vender, focasse suas produções em temas  heróicos ou inspirados em narrativas bíblicas evangélicas, longe das questão de gênero, do feminismo e de sexo, contando baboseiras.

Felizmente não tivemos um segundo governo Bolsonaro, no qual provavelmente a cultura ficaria sob o controle religioso e o cinema teria de se adaptar às exigências de uma teocracia cristã evangélica. No momento, o cinema brasileiro está em convalescença, mas espera-se que logo reapareça com força nos festivais internacionais e nos cinemas nacionais.

O Brasil escapou por pouco de uma nova ditadura, na qual a cultura em geral, o ensino e cinema poderiam ficar sob o controle de uma teocracia evangélica. Vamos focar agora o cinema iraniano, cuja qualidade e sucesso nos festivais nos lembra os anos faustos do cinema brasileiro.

Com o fim da monarquia do Xá Reza Pahlevi, a revolta popular acabou ficando sob o controle religioso do aiatolá Khomeini, criando-se uma censura geral que inclui mesmo uma maneira rigorosa e puritana de se vestir para as mulheres. Em síntese, instaurou-se uma exigente teocracia. Isso complicava nas filmagens, mas as divergências dentro do regime khomeinista no que se referia à cultura e ao sucesso do cinema iraniano no exterior permitiram uma certa ambivalência ou tolerância do governo com relação ao cinema, enquanto os cineastas procuravam - como faziam os cineastas brasileiros durante a ditadura militar - driblar as exigências baseadas na religião islâmica.

Isso incluía a fase da escritura ou roteiro do filme, as roupas das atrizes mesmo fora das filmagens e as palavras e entrevistas do cineasta ao apresentar seu filme nos festivais fora do Irã. Mas, sabendo se insinuar nos meandros das proibições e tocando de leve nos temas mais caros aos governantes, como o nacionalismo e a modernização da islamização, os cineastas iranianos conseguiram manter vivo o prolífico cinema dentro do país com grande sucesso no estrangeiro.

A tal ponto que o cinema iraniano vinha sendo o principal elemento de ligação do Irã com o Ocidente, com presença marcante nos festivais, capaz de garantir uma certa publicidade positiva do país. Os cineastas iranianos se tornaram mestres na arte de driblar a censura local e de jogar com a imaginação do público naquilo que é sugerido pelos filmes.

Entretanto, os líderes religiosos xiitas se radicalizaram. As recentes proibições e prisões de cineastas, agravadas com os assassinatos de manifestantes, entre eles o da jovem Jina Mahsa Amini, morta por ter colocado mal o véu, podem ter criado o clima de ruptura de uma parte da população, formada por muitas jovens, que não aceita mais continuar a se submeter ao regime teocrático iraniano, no poder há 43 anos.

O cinema independente iraniano está integrado no movimento Mulher, Vida e Liberdade, palavras de ordem repetidas nas manifestações que prenunciam uma revolução feminista contra um sistema milenar de dominação masculina. Alguns filmes feitos por cineastas independentes não mostram mais mulheres com o véu, porém não são exibidos dentro do Irã.

Acabou o tempo da coabitação de cineastas com o regime xiita teocrata, como foi o caso dos filmes de Abbas Kiarostami. Embora o cineasta Jafar Panahi tenha sido libertado e se refugiado na França, outros foram presos por alguns meses, como Mohammad Rasoulof, Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2020, e Mostafa Al-Ahmad, por ativismo antirrevolucionário.

O Festival Internacional de Cinema de Locarno mostrará o filme iraniano Zona Crítica, mas seu realizador, Ali Ahmadzadeh, foi proibido de sair do Irã e não poderá apresentar seu filme e nem conceder entrevistas. Desde o anúncio do seu filme ter sido selecionado para a competição internacional em Locarno, o cineasta vem sendo alvo de pressões do governo iraniano para retirar seu filme do festival. Para o cineasta, que foi convocado pelo Ministério de Segurança iraniano, o filme "é uma reflexão artística sobre a cólera e a raiva da jovem geração iraniana". O filme foi feito sem a autorização das autoridades, antes das recentes manifestações contra o governo em Teerã.

O representante da Luxbox Paris e Sina Ataeian Dena, produtores do filme, receberam mensagens com ameaças exigindo a retirada do filme do festival. Recusando esse tipo de pressão, Dena afirmou que divulgar essa situação é uma forma de proteger o cineasta e mostrar que o filme é a parte mais importante da luta contra a censura.

O filme de Ali Ahmadzadeh mostra o personagem principal, Amir, sendo guiado pela voz de seu GPS e circulando pelos distritos do submundo de Teerã para confortar as almas perturbadas da noite. O realizador iraniano resume seu filme: "em vez de atores, trabalhei com pessoas reais. Na maioria das situações, tivemos que esconder a câmera ou encontrar truques complicados para contornar as proibições. Fazer este filme foi uma grande rebelião. Mostrá-lo no Festival de Locarno significa uma vitória ainda maior para nós". (Rui Martins) 




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