Ou, aos 72 anos, estou mais para os veteranos caricatos que o conjunto britânico Jethro Tull satirizou em sua canção Too old to rock'n roll, too young to die?
Com esta dúvida cruel me atormentando, fui assistir a um vídeo daquela música sarcástica de 1976, depois de décadas sem escutá-la.
E fui recompensado: o último verso, do qual me esquecera, pareceu até uma resposta à minha inquietação: você nunca é velho demais para o rock'n roll se é jovem demais para morrer.
A morte não nos chega no momento mais apropriado, evidentemente. Mas desistir da vida, lá isso eu não fiz nem vou fazer. Continuo tentando, com todas as minhas forças, contribuir para a gestação de uma nova esquerda, que volte a colocar a superação do capitalismo como objetivo supremo em teoria e missão a ser cumprida dia após dia na prática, sempre levando em conta os limites impostos pela correlação de forças em cada momento, mas nunca desistindo de ampliá-los.
Nem deixarei de procurar o amor pleno com uma companheira tão inconformista quanto eu, que acredite na concretização dos melhores anseios da humanidade e também esteja disposta a correr os enormes riscos que acompanham tal opção.
Sabiamente o Raulzito advertia, não pense que a cabeça aguenta se você parar. Para quem, como eu, nunca deixou de ter no inesquecível ano de 1968 o referencial maior de sua existência (ou quem, como o companheiro David Emanuel de Souza, atribui relevância similar as jornadas de 2013), a luta não termina nem com a morte, pois deixaremos, servindo de inspiração para os pósteros, os exemplos que demos e as lições que aprendemos ao travarmos o bom combate.
Mas, esta trajetória singular começou um ano antes, quando, com a idade de 16, comecei a me entrosar com o movimento estudantil, primeiramente no meu colégio da Mooca. Em 1968 já estava entre os líderes da arregimentação secundarista em toda a enorme zona Leste paulistana. E em 1969, aos 18 anos, me tornei comandante estadual de uma das principais organizações guerrilheira que confrontavam a ditadura militar, a VPR do capitão Carlos Lamarca.
Depois de aprisionado; torturado; sofrer lesão permanente; quase morrer em várias ocasiões; amargar a perda (assassinados) de uns 20 companheiros que conheci, inclusive alguns muito próximos a mim, as portas do inferno se abriram para minha saída em 1972. Voltei às ruas para tentar juntar os cacos, depois de haver optado por vencer ou morrer e não ter acontecido nem uma coisa, nem outra.
Foi quando colegas da antiga escola me convidaram para participar de uma comunidade alternativa e, sem nada mais a perder, aceitei de pronto.
Nela lambi as feridas, superei traumas e me reconstruí. Conheci as drogas do meu tempo, abri as portas da percepção com o LSD e me fascinei pelo heavy metal de Alice Cooper e Black Sabbath. De certa forma, o rock macabro serviu para exorcizar meus pesadelos dos porões da repressão.
Passara batido pelo rock dos anos 50 porque era muito criança quando Elvis Presley escandalizava os EUA; e pelo dos '60 porque o mundinho encantado dos Beatles não tinha nada a ver comigo.
A fase de me ligar nos circos de horrores da tia Alice e do canastrão de reality show durou pouco. Logo descobri roqueiros bem mais afins comigo: Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Joe Cocker, Alvin Lee, Eric Burdon, Eric Clapton, Rolling Stones, praticamente toda a linhagem dos que haviam bebido nas fontes do blues e descartavam a herança do country and western.
A nossa comunidade no Jardim Bonfiglioli se estilhaçou em 1973 e eu juntei os trapos com uma menina, fomos viver em quitinete e fiquei reduzido à rotina de trabalhar em comunicação empresarial durante o dia, transar e escutar meus discos à noite. Repouso do guerreiro, depois de tanto alvoroço.
Em 1979 dei um bico na hibernação e fui buscar outras coisas na vida, partindo para o jornalismo de verdade, principalmente nas áreas de música e cinema. Em pouco tempo me tornei o homem do rock na Editora Imprima, que fazia as revistas Música, Violão & Guitarra e dezenas de títulos menores.
Minha seção na Música, Rock Stars, de duas páginas logo pulou para quatro. Aí criei uma revista também chamada de Rock Stars. Outra, a Internacional Extra, caiu nas minhas mãos e passou a abordar exclusivamente a trajetória de roqueiros. E dei à luz a Rock Show e a Rock Passion.
Assinava André Mauro, porque continuava na lista negra da ditadura e meu nome real atrairia atenções indesejadas. Basicamente, mantive a abordagem do rock como contestação ao sistema capitalista num período em que ele começava a se transformar em máquina de fazer dinheiro a partir de altos investimentos promocionais e de mega-espetáculos (estando no gramado do Morumbi quando o Queen inaugurou no Brasil a era dos shows em estádios de futebol, pressenti a mudança dos ventos).
Mas, o público-alvo da minha editora eram exatamente os roqueiros de raiz, que detestavam Peter Frampton, Abba, Wings, etc. Então, carreguei a bandeira do verdadeiro rock até o final de 1984; cheguei a ter uma breve amizade e a manter muitos papos etílicos com o Raul Seixas; e nunca fui tão feliz como jornalista, mesmo tendo de vender, para complementar o orçamento, boa parte dos discos que recebia das gravadoras. Nada iguala o prazer de amarmos o que fazemos.
Até que meu castelo de cartas desabou mais uma vez, a crise do papel levou a editora a extinguir metade dos seus títulos e não havia mais jeito de eu sobreviver com os que sobraram. Tive de ir ganhar muito mais fazendo um jornalismo do qual gostava muito menos.
No ano 2000, novamente troquei uma posição consolidada pela tentativa de realizar um sonho, o de ser pai biológico, o que não conseguira até então por força de uma existência tumultuada. Essa opção geraria tantas consequências que passei 2004 e 2005 numa penúria quase total, tendo de fazer das tripas, coração para obter logo a anistia de ex-preso político a que tinha pleno direito, mas certas panelinhas que privilegiavam os seus integrantes estavam passando os lobos solitários como eu para trás.
Acabei vencendo a duras penas essa batalha e ela projetou meu nome na web, abrindo caminho para um livro de memórias meu e de minha geração, a partir do qual fui me tornando conhecido principalmente como o principal jornalista que defendia Cesare Battisti e outros perseguidos políticos, como cronista da luta armada e dos combatentes que a travaram e, enfim, como um velho guerreiro que não trocou seus ideais pelas regalias do poder.
[Existem muitos e muitos outros que também não venderam a alma, mas a imprensa canalha prefere direcionar todos os seus holofotes para os maus exemplos.]
E, enfim, nunca deixo de lembrar que o ex-guerrilheiro Celso Lungaretti é também o ex-crítico de rock André Mauro. Não nego faceta nenhuma do meu passado.
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OS ROQUEIROS E O BOM COMBATE: O QUE MUDOU DESDE A GERAÇÃO 68? — O rock do final da década de 1960 identificou-se fortemente com a contestação política e a contracultura porque era o momento em que os jovens se chocavam com as barreiras de sociedades conservadoras e puritanas, nas quais a autoridade dos adultos é que deveria sempre prevalecer, sufocando-lhes a esperança de reciclarem o poder com a força da imaginação (além de, nos EUA, estarem sob ameaça de morrerem na tão execrada Guerra do Vietnã).
Era o fim do patriarcalismo e da hegemonia do capitalismo industrial, em processo de transição para a sociedade de consumo e para a ascendência dos setores financeiros e de serviços.
Entre uma forma de sociedade que caducava e outra que engatinhava, a rebeldia dos jovens foi uma espécie de cunha: o que eles quiseram naquele instante foi avançar não para outra etapa capitalista, mas para além do capitalismo.
As melhores cabeças dentre eles perceberam que já existiam plenas condições econômicas de, sem agressões suicidas ao nosso habitat natural, assegurar-se uma sobrevivência digna a cada habitante do planeta, desde que os frutos do trabalho humano fossem distribuídos de acordo com o critério do bem comum e não usurpados por minorias de privilegiados.
E mais: que isto poderia ser conseguido com uma carga muito menor de trabalho e de estresse para cada um de nós, dando-nos a oportunidade de desfrutar plenamente a existência, não mais como inimigos na luta pela sobrevivência, mas como companheiros fraternos na edificação da harmonia e da liberdade.
Os ventos de mudança sopraram intensamente na Europa e nas Américas, contudo não foram suficientes. A transição para a sociedade de consumo acabou se concluindo e consolidando. Fim da História?
Não, pois o capitalismo estagnaria no presente século, incapaz de retomar o crescimento, além de impotente face à escalada do aquecimento global e das alterações climáticas, uma lâmina de guilhotina pendente sobre o futuro de nossa espécie.
Incapazes de entender o que realmente está acontecendo e manipuladas o tempo todo pela indústria cultural, as pessoas se agarram a fiapos de esperança: desde o populismo neofascista dos salvadores da pátria até o autoritarismo embutido no combate à corrupção política, passando pela fé mercantilizada dos novos vendilhões do templo.
Chega a ser paradoxal a comemoração do seu Dia Mundial quando o que o rock tinha de visceral e espontâneo já se esvaiu, com o sistema retomando o controle que lhe escapou das mãos nos anos 50, 60 e parte dos 70.
Mas, como dizia o Gilberto Gil, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou. E os filhos da rebeldia que sobrevivemos física e mentalmente à onda conservadora das últimas décadas continuaremos gritando que, embora a indústria cultural tente fazer todos crerem que somos uma espécie em extinção, continuaremos o máximo que pudermos lembrando que o paraíso é possível hoje e agora.
Há que tentarmos outra vez e tantas vezes quantas forem necessárias para garantirmos aos que virão depois de nós uma vida digna de ser vivida. (por Celso Lungaretti/André Mauro)
Um comentário:
António Guterres: O sistema financeiro internacional é um “fracasso”
https://www.ihu.unisinos.br/630500-antonio-guterres-o-sistema-financeiro-internacional-e-um-fracasso
Os franceses não se tornaram mais autoritários, mas a democracia liberal lhes parece cada vez menos eficaz
https://www.ihu.unisinos.br/630506-os-franceses-nao-se-tornaram-mais-autoritarios-mas-a-democracia-liberal-lhes-parece-cada-vez-menos-eficaz-entrevista-com-fabien-escalona
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