terça-feira, 28 de março de 2023

BALANÇO DA QUARTELADA HEDIONDA E DOS 21 ANOS QUE VIVEMOS AGONICAMENTE

O repulsivo espetáculo a que assistimos recentemente, de pessoas zumbificadas acampando nas portas de quartéis para exigir aos berros um novo golpe militar, sem terem a menor noção do que o povo brasileiro padeceu sob as botas dos fardados durante 21 anos de imbecilidades e atrocidades, justifica plenamente uma recapitulação do que foi a usurpação do poder levada a cabo no dia da mentira de 1964 e a nada branda ditadura subsequente.

Lembrando a bela canção Sentinela, de Milton Nascimento e Fernando Brant, cabe a nós, sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelas do corpo e do sacrifício dos nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que a memória não morra – mas, pelo contrário, sirva de vacina contra novos surtos da infestação virulenta do despotismo.

Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a se destacar é que a quartelada de 1964 foi o coroamento de uma longa série de articulações e tentativas golpistas, nada tendo de espontânea nem sendo decorrente de situações conjunturais; estas foram apenas pretextos, não causa.

Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo. 
Mas, é incontestável que a ultradireita vinha há muito tempo tentando virar a mesa.

Já em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas tentava contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. 

Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência parda do ditador Geisel.

Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, os militares já se insubordinavam contra o governo constitucional, na revolta de Jacareacanga.

Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças.

E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente com os conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo, só voltando atrás diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil.

Apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos chamados grupos dos 11 brizolistas, inexistia em 1964 uma possibilidade real de revolução socialista. Não houve o alegado contragolpe preventivo, mas, pura e simplesmente, um golpe para usurpação do poder, meticulosamente tramado e executado com apoio dos EUA, como hoje está mais do que comprovado. 

Derrubou-se um governo democraticamente constituído, fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade civil, prenderam-se e barbarizaram-se cidadãos.

A esquerda só voltou pra valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa foram respondidas com o uso cada vez mais brutal da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações.

Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do Legislativo e do Judiciário meros Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais elementares direitos dos cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos movimentos de massa.

As organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses.

Em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média.

Nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio premeditado dos militantes, que, mesmo quando capturados com vida, eram friamente executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato sistemático dos combatentes do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas da História brasileira – daí a obstinação dos carrascos envergonhados em darem sumiço nos restos mortais de suas vítimas, acrescentando ao genocídio a ocultação de cadáveres.

O milagre brasileiro, fruto da reorganização econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem.

As ciências, as artes e o pensamento eram cerceados por meio de censura, perseguições policiais e administrativas, pressões políticas e econômicas, bem como dos atentados e espancamentos praticados pelos grupos paramilitares consentidos pela ditadura.

Corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram).

A arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969 apenas por estar passando em alta velocidade diante de um quartel, na madrugada paulistana (o comandante da unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter cumprido fielmente as ordens recebidas!).

Longe de garantirem a segurança da população, os integrantes dos efetivos policiais chegavam até a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte).

O aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam de empresários direitistas vultosas recompensas por cada
subversivo preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de valor com os resistentes. Acostumaram-se a um padrão de vida muito superior ao que sua remuneração normal lhes proporcionaria.

Daí terem resistido encarniçadamente à disposição do ditador Geisel, de desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se tornou desnecessária:
— mataram cidadãos inofensivos como Vladimir Herzog;
— promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro, que, se bem executado, provocaria morticínio em larga escala); e
— chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do Exército.

A ditadura terminou melancolicamente em 1985, com a economia estagnada e os cidadãos fartos do autoritarismo sufocante. Seu último espasmo foi frustrar a vontade popular, negando aos brasileiros o direito de elegerem livremente o presidente da República, ao conseguir evitar a aprovação da emenda das diretas-já.

Foi responsável pela morte dos 434 opositores relacionados pela Comissão Nacional da Verdade,   pela prisão arbitrária de uns 50 mil brasileiros e pela tortura de, no mínimo, 20 mil cidadãos, afora ocorrências praticamente impossíveis de quantificar, como os abusos sexuais.

[Há quem sustente consistentemente que outros 600 camponeses, sindicalistas, líderes rurais e religiosos, padres, advogados e ambientalistas tenham sido assassinados por motivos políticos nos grotões do país entre 1961 e 1988. E respeitados antropólogos denunciam a ocorrência de um verdadeiro genocídio indígena nos anos de chumbo.]

Este rápido balanço pulveriza a falácia de uma suposta brandura da ditadura brasileira, embora haja matado menos do que algumas congêneres sul-americanas...  (por Celso Lungaretti)

3 comentários:

Anônimo disse...

https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/03/miguel-de-almeida-as-dissimuladas.html

https://s2.glbimg.com/mLaVLgI85ItFU3dij1Z_FVmx4EQ=/0x0:1508x2295/600x342/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/6/v/vs7VXqRmSNPv59X91r1g/40815056-13111996-reproducao-pa-stuart-angel..jpg

Anônimo disse...

Boa noite Celso, tudo bem por aí?
Uma dúvida, de quem procura diferentes
pontos de vista, e não pertence a nenhuma
"bolha": Você conhece as crônicas do
Paulo Ghiraldelli? Já esteve na presença
do mesmo em debates ou palestras, não?
Um Abraço do Hebert.

celsolungaretti disse...

Hebert, não se trata de "bolhas", mas sim de visões de mundo e linhas de pensamento. Os textos desse senhor não me trazem informações ou suscitam reflexões novas, que me ajudem a aprofundar minhas definições básicas. E já passei da idade de ler tudo que circula por aí.

Uma das melhores frases do Marx é a que diz: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras. Chega a hora de transformá-lo". Interessam-me as teorias que iluminam a prática, não o conhecimento pelo conhecimento.

Sou, basicamente, um homem de ação com uma boa base teórica, mas, acima de tudo, um homem de ação. Não pertenço à elite acadêmica, nem quero.

Até os meus 18 anos eu tinha a ambição de ser um filósofo, mas foi na luta, começando pelo movimento estudantil, que encontrei meus verdadeiros caminhos: o de vivenciar pessoalmente aquilo que prego, assumindo todos os riscos decorrentes desta opção; e o de utilizar o conhecimento que adquiro (tanto nos livros quanto nas lutas concretas) como ferramenta para transformar a sociedade.

Um forte abraço!

Related Posts with Thumbnails