sexta-feira, 24 de junho de 2022

BATTISTI NA FOLHA DE S. PAULO (desta vez sem copo de pinga na mão) – 1

Entrevistado pela Folha em 2011, foi induzido pelo
repórter a posar parecendo cachaceiro; a foto saiu
com grande destaque na capa da edição dominical
H
á calhau e pirita (ouro de tolo) em abundância, mas poucas pepitas do metal precioso na longa reportagem do jornalista mineiro Lucas Ferraz sobre o escritor Cesare Battisti, cuja terceira e última parte foi publicada nesta 6ª feira (24) pela Folha de S. Paulo.

É resultado de uma troca de mensagens entre ambos que começou em abril de 2021, acrescida de algumas entrevistas de apoio, mais conclusões (às vezes um tanto equivocadas) do Ferraz. 

Devem-se relevar algumas concessões que o autor deve ter feito para obter tamanho espaço em tal jornalão, mas considero indesculpável ele referir-se a Battisti como "ex-terrorista", algo que nunca foi.

A designação de terrorista para satanizar os militantes que pegaram em armas contra a ditadura militar foi difundida pelos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas brasileiras nos anos de chumbo, tratando-se, na verdade, de uma inexatidão de cunho meramente propagandístico. 

Antes era usada para qualificar aqueles que tentavam paralisar o Estado por meio do terror, ou seja, mediante explosões e tiros contra governantes e altos funcionários de governos – caso da organização nacionalista sérvia Mão Negra, que acabou precipitando a 1ª Guerra Mundial ao assassinar o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Hungaro, no atentado de Saravejo.

É óbvio que a Folha, tendo chegado ao cúmulo de referir-se à ditadura militar como ditabranda num editorial de fevereiro de 2009, jamais deixaria de surfar nessa onda, semeando a confusão entre resistentes e terroristas.

Mas, Battisti era um resistente? Fui eu que popularizei tal termo para designar quem exerceu no Brasil o direito milenar de resistência à tirania. Utilizava-o nos arranca-rabos virtuais com as viúvas da ditadura. Ele ganhou asas nas redes sociais e não tenho como hoje rastrear sua origem, daí jamais ter reivindicado sua autoria propriamente dita.
Ele só se tornou alvo preferencial do
Berlusconi após obter sucesso na França
 
 

Sua adequação ao drama italiano é controversa, mas Tarso Genro acertou na mosca ao tratar a Itália do final da década de 1970, quando pululavam grupúsculos do tipo do Proletários Armados para o Comunismo, como 
"uma democracia com zonas cinzentas".

[Ou seja, com imprensa livre, partidos e sindicatos funcionando sem restrições, etcétera e tal, mas também com uma repressão política que atropelava os direitos humanos e uma justiça que chegava a permitir que um suspeito permanecesse em prisão preventiva por até 10 anos e oito meses, conforme destacou Norberto Bobbio.]   

É que, tal qual no Brasil, a principal força da esquerda italiana traiu seus princípios e, para chegar ao poder, mancomunou-se com um putrefato partido de centro-direita, parceiro até da máfia. Refiro-me, claro, ao compromisso histórico entre o Partido Comunista Italiano e a Democracia Cristã. 

Com isto, jovens militantes como Battisti sentiram o chão fugir-lhes sob os pés, já que sua sonhada revolução ficaria postergada por décadas. Daí terem cedido à tentação de partirem também para a violência. 

[Violência que já vinha sendo praticada pela extrema-direita desde 1969: os fascistas cometeram grandes atentados em várias cidades, geralmente investigados de forma omissa e relapsa pelas forças de segurança, embora exterminassem civis por atacado. Só no principal deles, em 1980 na estação de Bolonha, morreram 85 pessoas e ficaram feridas umas 200.]

Quando em liberdade no Brasil, o Cesare me garantiu ser inocente dos quatro homicídios a ele imputados, o que, na verdade, não importava tanto assim para mim: desde muito cedo passei a considerar doentio o revanchismo contra pessoas por crimes cometidos uma eternidade atrás, desde que não tivessem reincidido. 

Haver um prazo de prescrição me parece indissociável da própria civilização, pois é uma covardia atormentar idosos decrépitos pelo que fizeram quando jovens insensatos. 

Battisti, p. ex., sofre agora uma implacável vendetta apesar de o sofrido escritor e pai de família com 67 anos ser muito diferente do desempregado envolvido naqueles episódios transcorridos quando ele tinha 23 e 24 anos.
Bolsonaro bem que tentou, mas quem monopolizou
os holofotes da captura do Cesare 
foi Matteo Salvini


Não é justiça, mas sim vingança extemporânea. 
A glorificação de judeus caçadores de nazistas, p. ex., só cabe na mente de quem cultua deuses inclementes como o do Velho Testamento cristão. 

O que primeiramente me chocou, quando, anos depois, fiquei conhecendo bem o episódio, foi o sequestro de Adolf Eichmann pelo serviço secreto israelense, o Mossad. Motivo: o flagrante desrespeito à soberania argentina, como se no seu território quaisquer governos estrangeiros pudessem fazer o que bem entendessem. 

Sentia também, claro, compaixão pelas vítimas do Holocausto; mas isto não justificava o habitual espezinhamento dos países hermanos. Meu sangue latino ferve quando tomo conhecimento dessas ocorrências humilhantes.

Então, ao lançar uns 250 textos diferentes como principal porta-voz do Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti no período 2008-2011, além de percorrer o Brasil dando palestras e participando de mesas-redondas, bem como de comparecer às sessões de julgamento no STF, o que realmente me movia eram as certezas de que:
— pela lei brasileira os quatro homicídios a ele imputados já estavam mais do que prescritos, daí o absurdo de extraditá-lo em benefício da autopromoção do Silvio Berlusconi (afora ser anticonstitucional a extradição de quem tem filho brasileiro, como era seu caso);  
— era uma aberração a Itália não haver passado uma borracha nesse passado deplorável depois que voltou à normalidade plena.

Assim como foi logo revogada a legislação desmedidamente punitiva que o país adotou na esteira do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, uma ampla anistia também era obrigatória, já que haviam sido cometidos excessos por ambas as partes. 

Battisti, contudo, andou falando para cada público o que este queria ouvir e, com isto, acabou deixando confusos até seus apoiadores. 

Enquanto isto, a imprensa brasileira, com raras exceções, era absolutamente tendenciosa, a ponto de sempre o haver tratado como um sádico que tivesse apertado o gatilho em quatro assassinatos.
Alberto Torregiani até admitiu a ausência do Battisti no
tiroteio em que seu pai morreu, mas depois escreveu
livro (que virou filme) erigindo-se em sua grande vítima
 

Foi em vão que nosso comitê cansou de alertá-la de que a simultaneidade entre dois deles inviabilizava sua presença pessoal em ambos.

A reportagem de Ferraz lança luzes sobre a questão:
"Em dois homicídios, ele foi condenado como autor dos disparos: o do agente penitenciário Antonio Santoro, em junho de 1978, e do motorista de uma divisão da polícia de combate ao terrorismo, Andrea Campagna, em abril de 1979.

Na execução do açougueiro Lino Sabbadin, foi condenado por dar cobertura; na do joalheiro Pierluigi Torregiani, como coidealizador.

Ele (...) ressaltou que nas execuções de Torregiani e Sabadin foi apontado por colegas como 'decisivo apoiador' por estar à época fora da Itália, uma forma de os ex-membros do PAC aliviarem a responsabilidade de quem estava preso".
O próprio Battisti, contudo, acabou passando recibo, em juízo, até mesmo das invencionices da justiça italiana. O que Ferraz relata desta maneira:
"Na tentativa de conseguir algum benefício na prisão, uma das condições era admitir os crimes, algo que ele sempre negou nos longos anos de refúgio no México, na França e no Brasil.

O advogado que assumiu sua defesa, Davide Steccanella, especialista em defender envolvidos nos anos de chumbo italiano, insistia nesse ponto. Resistente à ideia, Battisti cedeu, mas sem falar sobre a participação de terceiros. A admissão ocorreu em março de 2019, dois meses após seu retorno ao país".
Morales querendo identificar-se com Guevara, mas...
Nem um mês depois eu já escrevia: 
"...faz sentido supor que Cesare estivesse (...) com suas forças tão exauridas que só quisesse ser mantido numa prisão menos desumana, podendo ler, quem sabe até escrever, e continuando a receber visitas frequentes dos seus entes queridos".

E, em setembro, numa carta à revista Fórum, ele diria: 
"A pergunta a ser feita seria mais concretamente esta: valeu a pena? Sim, sem dúvida (à parte as omissões que deixei passar ao momento de assinar o acordo, lamento o cansaço), porque, apesar do massacre, ainda tenho vontade de ter um cérebro todo meu, uma cadeira e uma mesa para escrever à vocês, à minha família e a todos aqueles que ainda querem ler".
Mas, foi de uma ingenuidade extrema ao não exigir das autoridades italianas uma garantia mais concreta de que receberia a contrapartida negociada. Ficou me parecendo que ele assinou, isto sim, um cheque em branco. 

O que, aliás, não me surpreendeu depois daquela precipitada e canhestra tentativa de fugir para a Bolívia em outubro de 2017, quando, embora o veículo tenha sido detido e revistado na estrada, prosseguiu tranquilamente em sua viagem até a fronteira, onde, como era de esperar-se, havia uma cilada à sua espera. 

Salvou-se por um triz de ser extraditado já naquela ocasião, mas passou a ser vigiado como nunca no Brasil, o que prejudicou em muito suas chances de sair-se bem na segunda tentativa. 
...farinha do mesmo saco era este outro.

Uma pergunta que não quer calar, contudo, é: Evo Morales já estava mancomunado com os italianos antes mesmo de Cesare chegar à Bolívia ou só foi procurado por eles depois, sendo então convencido a trair miseravelmente aquele que nele tanto confiara? 

Outra: terá Battisti esquecido que a desgraça de Che Guevara se deveu a um presidente boliviano haver dado aos rangers estadunidenses autorização para caçá-lo como bem entendessem e até para executarem-no a sangue frio? (por Celso Lungaretticontinua neste post)   

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