O que considerei realmente significativo na quilométrica reportagem sobre Cesare Battisti que a Folha de S. Paulo publicou na semana finda e eu dissequei neste e neste posts, foi ele:
1. ter assumido a responsabilidade por duas das quatro vítimas fatais a ele atribuídas (um agente penitenciário detestado pelos militantes presos e um motorista da repressão aos, repito, centenas de grupúsculos de esquerda surgidos na Itália durante os anos de chumbo);
2. haver esclarecido que as mortes do açougueiro e do joalheiro foram atiradas nas suas costas pelos delatores premiados porque o supunham definitivamente a salvo na França e queriam ser libertados o quanto antes; e
3. estar, afinal, dando sua opinião sincera sobre os homens de poder envolvidos com sua via crucis na América do Sul.
Respeito o trabalho do colega Lucas Ferraz e admiro sua perseverança ao ficar trocando mensagens com Battisti por mais de um ano para realizar sua reportagem.
Ademais, admito a possibilidade de que algumas ressalvas que fiz explicita ou implicitamente lhe tenham sido impostas pelo editor ou pelo diretor de redação, pois todos sabemos que a Folha de S. Paulo não é exatamente um jornal neutro em tais assuntos.
De resto, com o que mais fiquei sabendo, além do muito que já sabia sobre os assuntos tratados na reportagem, devo desculpas aos leitores por, quando eu defendia a libertação de Battisti, haver afirmado que ele não tinha a estrutura psicológica de quem pudesse haver matado algum inimigo.
Baseava-me nos militantes que eu conhecera e o haviam feito, geralmente idealistas e humanistas, mas que não vacilaram quando circunstâncias extremas o exigiram. O Cesare, desde a primeira vez que o tive frente a frente, ao entrevistá-lo dissimuladamente na Papuda apesar de o relator do processo não estar permitindo entrevistas, não me pareceu possuir tal têmpera.
Errei ao comparar meus antigos companheiros de luta armada, que sabiam estar enfrentando uma ditadura assassina e se dispunham a vencer ou morrer, com um europeu que atuou em circunstâncias mais amenas e, como várias vezes demonstrou, não cogitava sacrificar a vida pela causa. A diferença de perfis me deu a impressão de que, diante do perigo, ele refugaria como um Bolsonaro qualquer.
Mas, se há diferenças jurídicas entre pegar em armas para resistir a um terrorismo de Estado imposto a partir de uma usurpação golpista do poder (como foi o caso brasileiro) e uma democracia que agia como ditadura no tocante à repressão policial e à tendenciosidade jurídica por ela praticadas naqueles anos de chumbo (como foi o caso italiano), no campo de batalha a diferença era quase nenhuma.
Sábio foi François Mitterrand que, face aos inegáveis excessos cometidos pelos dois lados na Itália (sendo que quem primeiro neles incidira havia sido a extrema-direita e as matanças por ela produzidas foram as piores, já que nos seus grandes atentados as vítimas eram muito mais numerosas e quase todas civis), ofereceu em 1985 proteção aos perseguidos italianos dispostos a desistir definitivamente de suas lutas e passar a viver ao abrigo das leis francesas e as cumprindo.
Os fascistas não precisaram disto, pois eram tratados com uma repulsiva complacência pelo Estado italiano. Aos que os combatiam, no entanto, era aplicado todo o rigor da lei, além de tudo mais que pudessem fazer na surdina.
Os náufragos daquela utopia mereciam viver em paz dali em diante, como Battisti teria vivido –depois de exercer algumas profissões honestas na França, constituir família e se projetar como escritor– se Berlusconi não o houvesse erigido em troféu preferencial para fins de autopromoção.
Como surpreendentemente declarou a Lucas Ferraz o insuspeito Mattia Feltri, articulista do jornal La Stampa e filho de um dos jornalistas mais conservadores da Itália, o verdadeiro motivo da perseguição a Battisti foi "uma vingança do Estado". E explicou:
"Contra a lei e contra a lógica, o Estado italiano não parece ter por Battisti uma urgência de justiça, mas sim uma urgência de vingança. Nada justifica a segurança máxima para um homem quase septuagenário condenado à prisão perpétua por homicídios cometidos há mais de quatro décadas, mas imagino que invocar um tratamento justo e digno para um homem detestado por todos seja um pouco irrealista".
Fascinado desde os 16 anos de idade pelas poesias de Brecht, é na última estrofe de Aos que virão depois de nós que fui buscar o recado que quero deixar aqui como palavra final:
"Nós sabemos: o ódio contra a baixeza também endurece os rostos! A cólera contra a injustiça faz a voz ficar rouca! Infelizmente, nós, que queríamos preparar o caminho para a amizade, não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. Mas vocês, quando chegar o tempo em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão". (CL)Teclem no título para acessar os textos desta série:
BATTISTI NA FOLHA DE S. PAULO (desta vez sem copo de pinga na mão) – 1
BATTISTI NA FOLHA DE S. PAULO (o acerto de contas com homens de poder) – 2
BATTISTI NA FOLHA DE S. PAULO (tudo não passou de vingança do Estado) – 3
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