Sou neto de italiano por parte de pai e bisneto por parte de mãe. Mas as raízes familiares, se me influenciaram em algo, foi pouco, porque me chegaram bem diluídas.
Mesmo meu pai, que ficou órfão aos 11 anos, só aprendeu a arranhar o idioma porque era empregado de um grande cotonifício cujo proprietário, dirigentes e muitos colegas de trabalho tinham origem italiana.
Então, eu diria que pesaram muito mais na formação da minha personalidade os filmes humanistas e irreverentes que os italianos produziam nas décadas de ouro de1960 e 1970.
Assisti a boa parte deles e me senti traído quando, defendendo a liberdade do escritor Cesare Battisti, percebi que a outra face do povo italiano (a prostração infantilizada a homens fortes como Mussolini, Berlusconi e Salvini) atravessava os tempos, sobrevivendo à derrocada fascista na 2ª Guerra Mundial.
Enfim, por temperamento e reações, desde cedo pareço me reger pelo bordão aristotélico a virtude está no meio. A ponto de quem me conhecia apenas pelos textos às vezes estranhar quando constatava que eu pessoalmente me assemelhava mais aos brasileiros cordiais de outrora do que aos estereótipos de revolucionário inflamado.
Mas, aí entrava a minha formação teórica: aos 17 anos já estava careca de saber que as soluções intermediárias nada resolvem na política brasileira, pois a desigualdade e o autoritarismo estão de tal forma entranhados que só uma transformação em profundidade fará com que os brasileiros em si se transformem em brasileiros para si.
Daí eu nunca, nem mesmo durante a ditadura militar, ter-me sentido tão peixe fora d'água como neste terrível retrocesso civilizatório que vem desde que os erros crassos do PT ensejaram a volta triunfal da ultradireita ao poder na segunda metade da década passada, encorpada como nunca, embora ainda minoritária.
E o que me parte o coração é ver a esquerda reagir da pior maneira possível, estimulando o ódio e a polarização, ao invés de defender o legado civilizatório que deveria estar personificando.
É fácil acusar o bolsonarismo de único responsável pela barbárie atual, mas, com sua ojeriza extremada à autocrítica, o PT omite que foi assim que combateu os tucanos no passado, recorrendo às mentiras e às meias-verdades para desqualificá-los, já que desertara do front revolucionário.
Abdicou da superioridade moral indiscutível que detínhamos como marxistas ou anarquistas e acabou tornando as eleições meras escolhas do mal menor.
E também me deixa agoniado perceber que a confusão grosseira entre adversário e inimigo se irradia para todos os lados, a ponto de os piores preconceitos agora estarem envenenando até as torcidas de times de futebol com as melhores tradições, como a do Corinthians.
Sim, o Corinthians que, fundado em 1910, apenas duas décadas após o fim da escravidão, logo tentava incluir um jogador negro no seu time de futebol, o que foi vetado pela liga paulista, mas voltou à carga em 1919 e conseguiu inscrever o goleador Bingo.
E o Corinthians que brilhou não só na luta contra a ditadura militar como também no enfrentamento do autoritarismo no plano esportivo, graças a Sócrates e seus companheiros. Os gritos homofóbicos de parte de sua torcida no clássico deste domingo (22) contra o São Paulo devem ter feito o doutor revirar-se na cova.
Também aí percebo que chegamos a um beco sem saída. Há flagrantes excessos por parte dos que combatem os preconceitos tão inflexivelmente que tentam cancelar as criações populares do passado. Versos que outrora eram meramente singelos agora são fulminados como verdadeiras heresias a serem apagadas da linha do tempo.
Mas existe, por infelicidade, o outro lado: antigamente ninguém agredia e matava por causa deles, hoje há quem o faça. E isto hoje acaba justificando um retrocesso civilizatório de outra espécie, mas igualmente lastimável.
Eis alguns exemplos, extraídos de sambas e marchinhas carnavalescas:
— "Você só pensa em luxo e riqueza/ Tudo que você, você quer/ Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/ Aquilo sim é que era mulher" (de Mário Lago e Ataulfo Alves, 1942);
— "Nega do cabelo duro/ Qual é o pente que te penteia?/ Qual é o pente que te penteia?/ Qual é o pente que te penteia?" (de Ary Barroso, David Nasser e Rubens Soares, 1942);
— "Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é?/ Será que ele é/... Será que ele é transviado?/ Mas isso eu não sei se ele é" (de João Roberto Kelly, 1963);
— "Tá na cara/ Não minta/ Você já passou dos trinta" (de uma marchinha de carnaval hoje esquecida);
— "Maria Sapatão/ Sapatão, Sapatão/ De dia é Maria/ De noite é João" (de João Roberto Kelly, 1981);
— "A pipa do vovô não sobe mais/ A pipa do vovô não sobe mais/ Apesar de fazer tanta força/ O vovô foi passado pra trás" (de Manoel Ferreira e Ruth Amaral, na década de 1980);
— "A mulher do branco é esposa/ E a esposa do preto é mulher/ Mas minha mulher é só minha/ A do branco eu não sei se só dele é" (de César Roldão Vieira, provavelmente em 1965).
A política já chegava a ser amiúde um terreno minado, mas, quanto ao resto, bons tempos eram aqueles em que essas besteirinhas eram levadas na galhofa pelos demais e na esportiva pelos que se encaixavam em tais estereótipos,
Agora, são tantos os terrenos minados que já nem sabemos mais onde pisar! (por Celso Lungaretti)
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