quarta-feira, 9 de março de 2022

INVASÃO DA UCRÂNIA, ELEIÇÕES, MAMÃE FALEI, BBB... JÁ SATURARAM!!!

Resolvi escrever hoje sobre o décimo aniversário da morte do cineasta Paulo Cesar Saraceni, que transcorrerá daqui a cinco semanas.

Os leitores poderão considerar estranha tal escolha, mas foi a escapatória que encontrei para não abordar mais uma vez essa guerra retrô que um miasma do século 20  – déspota como Stalin e alucinado como Rasputin resolveu iniciar quando o mundo mal começava a respirar após aquela outra insuportável intrusão do passado no presente: uma peste!

E também para não perder mais tempo com uma eleição que apenas decidirá se o Brasil voltará aos tempos do mais rasteiro populismo com o Padim Lula ou do mais cruel obscurantismo com Torquenaro.

E, ainda, para não engrossar as fileiras dos que dão importância absolutamente desmesurada a besteirinhas como a satiríase de um cafajeste menor (quem nasceu para MamãeFalei nunca chega a Jece Valadão...) ou o voyeurismo de uma atração televisiva que coloca o grande público a espiar pelo buraco da fechadura os xiliques e baixarias de um catado de medíocres inglórios.

Fiquemos, pois, com Saraceni, que morreu aos 78 anos, tendo dirigido 13 filmes, nove dos quais também roteirizou.

Foi um dos fundadores do  cinema novo, mas nem de longe criou obras de importância equiparável às dos dois outros parceiros de empreitada: Glauber Rocha (indiscutivelmente, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos) e Nelson Pereira dos Santos (bem mais prolífico e realizador de clássicos como Rio 40 Graus e Vidas Secas).

No entanto, Saraceni constituiu-se numa referência muito forte para minha geração, por um único motivo: seu 
O Desafio, lançado em 1965, foi uma corajosa resposta cinematográfica à quartelada. Flagrou os sentimentos de culpa, impotência e prostração subsequentes àquela vergonhosa derrota sem luta e forneceu-lhes catarse.

Tratou-se de uma prostração que acometeu toda aquela esquerda: foi dormir supondo-se a um passo do poder, iludida pelo triunfalismo inconsequente do Partido Comunista Brasileiro e seu principal dirigente (Luiz Carlos Prestes), mas acordou ouvindo marchas militares no famigerado 1º de abril de 1964.

E dá-lhe más ressacas! E dá-lhe lavagens de roupa suja! E dá-lhe lutas internas no partidão! E dá-lhe rachas!

Em 1965, a esquerda lambia as feridas e se reconfigurava, voltada para dentro de si mesma. Não reagia.

Aí, foi lançado O Desafio. E –juro!– o título apareceu pichado nos muros de São Paulo. Só o título, com a tinta escorrendo. Eu tinha 14 anos, via aquilo e nada entendia. Ignorava que fosse uma mensagem vinda das catacumbas: não estamos mortos!

Só em 1967, dando os primeiros passos no movimento estudantil, fui assistir ao filme e compreender o motivo das pichações.

E, francamente, não gostei daquele imenso desencanto que ele flagra, o atoleiro no qual se move Marcelo, o personagem politizado (interpretado pelo Vianninha, de saudosa memória), durante quase todo o tempo.

Mas vibrei com o final, quando ele enfim levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, decidido a retomar o bom combate. 
Isto ficou apenas sugerido, como se fazia necessário sob o tacão da censura.
Depois de um porre com um repulsivo colega de trabalho, vão ao apartamento deste, cuja esposa se despe e se-lhe oferece. Antes que ele tenha qualquer reação, o marido acorda e fita ambos, em meio à sua névoa alcóolica. 

Marcelo empurra a mulher e vai embora, enojado. Desce uma escadaria com expressão resoluta, afaga a cabeça de um menino pobre e se distancia, marchando ao encontro do seu destino.

Tudo isto ao som do tema "É um tempo de guerra", da peça Arena conta Zumbi.

Ou seja, da canção que Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo haviam derivado de uma poesia antológica de Bertolt Brecht, para usar o esmagamento do quilombo de Palmares como metáfora do golpe militar.

Na peça, era a lição que um guerreiro às portas da morte legava aos que viriam depois. Uma sugestão velada também, claro ("Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso lutar/ Eu sei que é preciso morrer/ Eu sei que é preciso matar"). Só que parecendo algo meio distante, lá pra frente, pois o momento era de derrocada.

No filme, ficou mais fácil perceber que se tratava do passo seguinte, imediato: um recado de que não só a luta tinha de ser retomada, como assumiria dali em diante características de guerra.


Foi profético. Houve mesmo a guerra, de consequências trágicas para a esquerda (quantos quadros insubstituíveis foram dizimados!), mas inevitável: ela só reconquistaria o respeito do povo caso se dispusesse a sangrar por seus ideais, como deixara de fazer em 1964.

Muitos dos que não pegaram em armas recriminaram nosso  
vanguardismo, nosso imediatismo pequeno-burguês. Segundo eles, só servimos para acirrar a repressão e fornecer pretextos para o endurecimento do regime.

Omitiram ter sido exatamente sua tibieza em 1964, quando deixaram de travar a luta em condições bem mais favoráveis, que nos obrigou a assumir adiante a missão quase kamikaze de lavar a honra da esquerda, virando a página da desmoralização e restituindo-lhe a credibilidade. (por Celso Lungaretti)

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Celso:
Do meu humilde ponto de vista falar em
"lavar a honra da esquerda" não faz
sentido, pois a "honra" não passa de uma
moral burguesa. Quanto a "credibilidade"
Lula acabou com ela.(Joel Silveira)

celsolungaretti disse...

Troquemos em miúdos: em 1968, ao ver nosso entusiasmo nas passeatas, havia pessoas de outras gerações que nos advertiam: "Cuidado, na hora do pau os dirigentes vão trair vocês".

Esta era a forma como as pessoas simples encaravam a falta de resistência ao golpe de 1964. E era esta a carga que jogavam sobre nossos ombros, sentíamo-nos obrigados a, quando chegasse a nossa hora de sangrar pelos ideais, agir de forma bem diferente.

Éramos 8 secundaristas no final de 1968 e todos decidimos ingressar na VPR. Dois mortos. Cinco torturados. Uma que não foi presa, mas, traumatizada com os sustos de sua militância e com as mortes do marido, do irmão e do cunhado, tornou-se paranoica para sempre.

Quando falo em "lavar a honra" é a isto que me refiro. À obrigação que sentíamos de não sermos "bundões" como os "burocratas" de 1964. Pagamos um preço muito alto pelo que eles deixaram de fazer quando era a hora de assumirem suas responsabilidades.

Quando falo em mortos, refiro-me ao Eremias Delizoicov e ao Gerson Theodoro de Oliveira. O primeiro eu conhecia desde o Primário, juntos paramos nosso colégio, juntos agitamos as escolas da zona Leste, juntos estivemos nas passeatas, juntos ingressamos na VPR.

O outro, de São Miguel Paulista, foi um dos melhores frutos de nossa atuação secundarista. Amigo por quem eu morreria e que morreria por mim.

Estou me referindo a dramas reais e muito sofridos, não a besteirinhas semânticas.

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