Dezessete sinistros personagens deram sinal verde para torturas, assassinatos, estupros, ocultação de cadáveres e todo o festival de horrores dos anos subsequentes, principalmente até meados dos '80.
Eram eles o ditador Costa e Silva e 16 de seus ministros: Albuquerque Lima (Interior); Augusto Rademaker (Marinha); Carlos Simas (Comunicações); Costa Cavalcanti (Minas e Energia); Delfim Netto (Fazenda); Gama e Silva (Justiça); Hélio Beltrão (Planejamento); Ivo Arzua (Agricultura); Jarbas Passarinho (Trabalho); Leonel Miranda (Saúde); Lyra Tavares (Exército); Macedo Soares (Indústria e Comércio); Magalhães Pinto (Relações Exteriores); Mário Andreazza (Transportes); Souza e Mello (Aeronáutica); e Tarso Dutra (Educação).
Só um permanece vivo até hoje, Delfim Netto, que está com 93 anos e não se arrepende da autoria de uma assinatura da qual tanto sangue jorrou: segue afirmando que, se as circunstâncias fossem as mesmas, voltaria a proceder da mesmíssima maneira.
O 16º a falecer foi (em junho de 2016) o igualmente empedernido Jarbas Passarinho, de origem militar, que ao proferir seu voto, disse a frase mais emblemática daquela infame reunião ministerial:
"Às favas, sr. presidente, neste momento,
todos os escrúpulos
todos os escrúpulos
de consciência"
.
Ele continuou, pelas décadas adentro, enturmado com as aves de mau agouro, sempre defendendo o regime de exceção ao qual serviu nas equipes ministeriais de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.
Um mês depois chegou a vez de Rondon Pacheco, cuja assinatura não consta do documento, embora chefiasse o Gabinete Civil. Talvez a lacuna se deva a haver sido um personagem reticente naquele momento, tendo inclusive tentado fixar prazo para a vigência do AI-5: um ano apenas.
Também se atribui a ele e ao ministro da Justiça Gama e Silva o mérito de, numa reunião prévia, terem excluído do documento alguns pontos mais duros, como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Outra voz dissonante foi a do vice-presidente Pedro Aleixo, que inclusive empenhou-se adiante em restabelecer a legalidade. Chegou a convencer Costa e Silva, mas este morreu antes de concretizar o intento (coincidência?).
O golpe dentro do golpe, que levou ao paroxismo o fechamento ditatorial do País, foi o lance decisivo da disputa interna entre a linha dura militar (que queria radicalizar o arbítrio) e os conspiradores originais (oficiais veteranos da participação brasileira na 2ª Guerra Mundial).
Os últimos, encabeçados por Castello Branco, pretendiam manter a usurpação do poder por pouco tempo. Falavam numa intervenção cirúrgica, durante a qual imporiam medidas que modernizassem o Estado e enfraquecessem a esquerda (prisões, perseguições, cassações, extinção de entidades legais, etc.).
Aprenderam, contudo, que implantar uma ditadura é bem mais fácil do que dar-lhe fim.
Aprenderam, contudo, que implantar uma ditadura é bem mais fácil do que dar-lhe fim.
As duas posições competiram acirradamente pela hegemonia na caserna ao longo de 1968, mas o crescimento dos movimentos contestatórios fez a balança pender para o lado dos ferrabrases.
Estes iam ao encontro da cultura de intolerância que grassava nos quartéis, pois se propunham a dotar o regime de meios para reagir com maior contundência às manifestações de rua e ao desafio das organizações armadas, passando por cima dos direitos humanos.
Pesaram também os interesses mesquinhos dos oficiais das três Armas, seduzidos pelas perspectivas que o prolongamento do regime de exceção e a ampliação dos poderes ditatoriais abriam para seu enriquecimento pessoal:
— os da ativa, como gestores de um setor estatal que estava sendo cada vez mais inflado, ou como beneficiários de suas boquinhas; e— os da reserva como facilitadores dos favores oficiais (quase todos os grandes grupos privados contrataram militares reformados para integrarem seus conselhos de administração, como forma de terem seus interesses contemplados nos altos escalões governamentais).
Há historiadores hoje sustentando (vide aqui) que o AI-5 teria objetivado, principalmente, intimidar e enquadrar setores da sociedade civil que haviam apoiado o golpe de 1964, mas que, quatro anos depois, estavam ficando descontentes com a ditadura (casos da Igreja Católica, da imprensa, do Poder Judiciário e de líderes políticos). Fica o registro.
O pretexto para a nova virada de mesa foi um discurso exaltado do deputado Márcio Moreira Alves numa sessão esvaziada (o chamado pequeno expediente) da Câmara Federal, no início de setembro de 1968.
Tratava-se de uma lengalenga sem verdadeira importância (incluía até uma sugestão às moças, de que não namorassem alunos das academias militares – vide aqui), proferida apenas para constar dos anais e poder ser exibida depois aos eleitores, quando ele lhes fosse pedir votos num pleito vindouro.
Moreira Alves deu o pretexto que a linha dura buscava |
Mas, um jornalista favorável ao arbítrio vislumbrou a oportunidade de uma provocação e trombeteou-a; em seguida, os partidários do enrijecimento a divulgaram amplamente, mimeografada, entre os fardados, insuflando a indignação.
As Forças Armadas se declararam atingidas e o governo pediu ao Congresso Nacional a abertura de um processo visando à cassação de Moreira Alves.
Os parlamentares, depois de em tantas ocasiões, tão vergonhosamente, se prostrarem aos ultimatos da caserna, daquela vez rechaçaram o pedido, temendo que outras cabeças fossem exigidas na sequência e a caça às bruxas acabasse extinguindo o mandato de muitos deles.
Os parlamentares, depois de em tantas ocasiões, tão vergonhosamente, se prostrarem aos ultimatos da caserna, daquela vez rechaçaram o pedido, temendo que outras cabeças fossem exigidas na sequência e a caça às bruxas acabasse extinguindo o mandato de muitos deles.
Pateticamente, encerraram a sessão cantando o Hino Nacional, sem perceberem que tinham é escancarado as portas do inferno.
A resposta da ditadura foi imediata e a mais tirânica possível: colocou os Legislativos federal e estaduais em recesso e impôs à Nação, na marra, novas e terríveis regras do jogo.
O presidente da República (escolhido por um Congresso Nacional expurgado e intimidado) passou a dispor de totais poderes para:
— cassar mandato eletivos;
— suspender direitos políticos;— demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos;
— suspender o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional;
— legislar por decreto; e
— julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas totalitárias.
— legislar por decreto; e
— julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas totalitárias.
Principal ferramenta do terrorismo de Estado, o AI-5 só seria atirado na lixeira dez anos depois.
Nesse meio tempo, centenas de resistentes foram executados, dezenas de milhares torturados, mais de uma centena de parlamentares cassados, um sem-número de funcionários públicos atirados no olho da rua, a arte amordaçada (mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e umas 500 canções sofreram os rigores da censura), etc.
Nesse meio tempo, centenas de resistentes foram executados, dezenas de milhares torturados, mais de uma centena de parlamentares cassados, um sem-número de funcionários públicos atirados no olho da rua, a arte amordaçada (mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e umas 500 canções sofreram os rigores da censura), etc.
Quando os gorilas saíram do armário, o Brasil entrou num dos períodos mais bestiais e vergonhosos de sua História.
Hoje, embora a efeméride seja das mais negativas, há algo a ser comemorado: o fracasso acachapante da horda de mentecaptos ultradireitistas que, com o destrambelhado incentivo de um presidente cujos sintomas de insanidade mental são indisfarçáveis, tentou nos últimos três anos retirar tal abominação nauseabunda da lixeira da História.
Mas, a micareta golpista que eles programaram para o último dia 7 de setembro flopou de forma tão ridícula que só haverá condições de repetirem tal palhaçada daqui a outra metade de século, caso a agonia do capitalismo não chegue ao fim até lá e suas vítimas, desesperadas, tenham nova crise de amnésia.
Desta vez não passaram. E, para os que virão depois de nós, fica a tarefa de garantir que nunca mais passem!
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UM DEPOIMENTO PESSOAL – Para jovens estudantes que, como eu, ingressaram na luta a partir do novo ascenso do movimento de massas, aquele agourento 13 de dezembro de 1968 marcou o fim da aventura e o início da tragédia.Passáramos o melhor ano de nossas vidas descobrindo a luta e descobrindo-nos na luta. Aí veio aquele pacote de medidas draconianas ao extremo, cujas implicações captamos de imediato: haviam declarado guerra contra nós e os riscos dali em diante seriam imensos.
Mesmo assim, diante da alternativa desistir x perseverar, fizemos a opção digna... que se revelaria das mais sofridas.
Então, o AI-5 foi o divisor de águas entre o 1968 exuberante e o 1969 soturno.
A passeata dos 100 mil foi o ápice dos protestos de 68 |
Entre o enfrentamento a céu aberto e o martírio nos porões.
Entre a luta travada ao lado das massas despertadas e a luta que travamos sozinhos em nome das massas amedrontadas.
Meu avô morreu quando meu pai tinha 11 anos. Como era o primogênito, minha avó fez com que começasse imediatamente a trabalhar numa fábrica escura, barulhenta e empoeirada, burlando a legislação que exigia idade mínima de 14 anos.
Passou o resto da vida lamentando a responsabilidade que desabou cedo demais sobre seus ombros. Num dia, estava despreocupadamente jogando bola no campinho ao lado de sua casa. No outro, esfalfando-se oito horas seguidas para colocar o pão na mesa familiar.
O AI-5 teve o mesmo efeito sobre mim. Até então, a militância era puro deleite. De um momento para outro, tornou-se um pesadelo que me deixou em frangalhos, além de tragar alguns dos meus melhores amigos e tantos companheiros estimados.
Parafraseando uma bela canção de Neil Young, foi a saída do azul e entrada nas trevas. (por Celso Lungaretti)
Um comentário:
Caro Celso
Que ótimo! Isso merece ser divulgado e guardado.
Mais uma vez você aparece como historiador.
Abraços
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