Diferente da paródia ou da comédia, a sátira não se prende a subterfúgios ou a narrativas de entrelinhas. Ela geralmente trata de costumes, práticas sociais ou instituições, sendo feita para atingir um público o mais amplo possível.
Filme recém-lançado, Não Olhe para Cima (d. Adam McKay, 2021) é um exemplo claro de sátira, tendo por objeto a sociedade burguesa no início do século 21, mais especificamente a sociedade burguesa dos EUA.
A premissa do filme é igual à de tantos outros blockbusters do cinema: um gigantesco meteoro, do tamanho do monte Everest, está em rota de colisão com a Terra e é preciso fazer algo para se evitar um Evento Massivo de Extinção, ao nível do que eliminou os dinossauros da face do planeta há milhões de anos.
Nos primeiros minutos, tudo parece encaminhar-se para o mesmo roteiro de Armagedon ou Impacto Profundo, filmes nos quais idêntica ameaça foi levada a sério e tratada com os previsíveis militarismo e patriotismo.
Mas logo a seriedade cede lugar à bizarra cena de um general do Pentágono cobrando um trocado por lanches que são grátis. Daí para a frente, o que impera é o non sense. Ou deveria ser assim, se não estivéssemos numa quadra da história em que se permite aos mais inglórios e dementes bastardos o uso de faixas presidenciais ao invés de camisas-de-força.
É interessante a virada narrativa entre blockbusters anteriores e este filme em particular. Enquanto naqueles o patriotismo e o militarismo salvavam o planeta, aqui eles são apenas máscaras para o interesse mesquinho de indivíduos que não se importam mais com nada a não ser com seus ganhos pessoais.
Mesmo a ciência se desvirtuou, com seus luminares oscilando entre a submissão total às megaempresas e a busca sôfrega de holofotes. Enquanto os Prêmio Nobel agem para atender os interesses irreais do bilionário, o acadêmico (que é mais professor do que cientista) se deslumbra com a chance de ser adorado por todos e de transar com a atraente apresentadora de TV.
Tal mudança com relação à abordagem do trio militarismo/patriotismo/ciência sinaliza uma mudança da própria sociedade ou, pelo menos, do modo como esta se vê.
Antes o tio Sam ainda podia se dar grande importância, acreditando na relevância ideológica de seu famoso complexo industrial-militar, o qual é baseado justamente na citada tríade. No entanto, quando um bufão topetudo consegue chegar à Casa Branca e ridicularizar as instituições do Império, a ponto de quase ser consumado um golpe de estado fanfarrão, não é mais possível levar nada disso a sério.
Este é o ponto de partida de Não Olhe para Trás: a premissa do colapso de toda liturgia ideológica da sociedade burguesa, especificamente do seu centro todo poderoso, os EUA.
Enquanto sátira, o filme não fornece explicações para este colapso, apenas se atém a uma espécie de representação quase jornalística da situação atual da sociedade. A principal ideia que se sobressaí de toda esta representação é que a sociedade atual produz intensa e necessariamente a burrice.
Burrice que, neste caso, expressa profunda desconexão dos indivíduos com a realidade vivida. Mais do que isto, é a impossibilidade de pensar tal realidade objetivamente e em termos de consequências. Cada pessoa virou uma mônada, superficial e a-histórica.
Por isso, a relação amorosa de uma pop star (a mesma, inclusive, usada posteriomente pelos cientistas para tentar convencer o mundo do perigo do meteoro) pode ter mais impacto social que o anúncio do fim do mundo.
— o jornalismo varia do infantilismo da mídia televisiva ao mercenarismo da mídia escrita tradicional;
— um bilionário psicopata é saudado como se fosse um Cristo ressurrecto;
— é capaz de existir uma campanha tão esdrúxula quanto a de exortar a população a não olhar para o céu e, assim, deixar de ver o meteoro se aproximando.
Mas é igualmente por este caráter social de indiferença geral quanto ao mundo e quanto à história que se torna possível a existência de ações altamente egoístas como da presidente eleitoreira, do general rapinante ou do cientista deslumbrado.
Todos buscam apenas o imediato, o superficial, porque toda universalidade, espacial ou temporal, foi perdida e a sociedade não existe mais a não ser enquanto meio para satisfazer suas compulsões de ganha-ganha.
O ápice desta lógica é justamente o bilionário psicopata que, em sua ambição máxima de apoderar-se dos raros minerais do meteoro, coloca em risco o próprio planeta. Quando seu plano patético dá errado, ele simplesmente embarca em sua nave espacial rumo a outro planeta habitável, com o mesmo remorso de quem negou o lugar no ônibus para uma velinha.
O filme não mostra o motivo de a sociedade ter ficado tão burra a ponto de escolher ser presidida por um Bolsonaro ou um Trump, mas aqui entra o passo além da crítica.
É que todo filme de desastre visa preparar psicologica e ideologicamente a população para a ideia de que o caos capitalista sempre será contornado pelas forças racionais do Estado e das instituições em geral.
A sociedade capitalista está sempre à beira do colapso total, ou seja, encontra-se sempre a um passo de um desastre apocalíptico. Nos filmes, tal ameaça se corporifica, p. ex., num cataclisma natural ou cósmico, afinal, como tantas vezes nos repetem os noticiários da GloboNews, o mercado capitalista é uma força da natureza, e não uma criação histórica...
Já a sobrevivência da humanidade graças ao engenho da tríade militares/políticos/cientistas é a salvação do colapso total por via das instituições burguesas. Mas, e quando estas próprias instituições se tornaram burras, ou seja, foram dominadas pelos interesses imediatistas e particulares? Aí não vai haver escapatória e a sociedade burguesa estará fadada a desaparecer.
É por esta razão que. em Não Olhe Para Cima, o meteoro atinge a Terra e causa o fim da vida no planeta. Não porque ele fosse imparável, mas porque a própria sociedade não pode mais gerar mecanismos para fazer frente a ele. A burrice socialmente produzida tornou a sociedade disfuncional.
Mas o que gera tal burrice? A própria sociedade burguesa, capitalista. Desde que a burguesia se tornou classe dominante, ela abriu mão do entendimento racional da realidade. Se antes, em sua luta contra o feudalismo, era importante para ela compreender criticamente o mundo, depois isto já não lhe convinha.
Daí a sua renúncia a qualquer discernimento sobre o mundo social, em primeiro lugar.
Depois esta repulsa ao pensamento chegou à natureza e o conhecimento científico natural foi reduzido à cognição daquilo que pudesse ter utilidade econômica. O conhecimento para uso imediato passou a ser a tônica suprema, ao mesmo tempo em que a cultura popular. expressão da vivência dos cidadãos comuns, era trocada por fantasias manipulatórias produzidas nos grandes conglomerados da indústria cultural.
"O filme não mostra o motivo de a sociedade ter ficado burra a ponto de ser presidida por Bolsonaro ou Trump" |
Ou seja, a formação acadêmica foi reduzida a formação tecnicista e a cultura foi transformada em consumo pasteurizado de símbolos. Dos dois lados, o pensamento, o espírito crítico e a visão de longo prazo foram pulverizados.
Calcado na lógica de reprodução acelerada e infinita do capital, a sociedade caiu no pragmatismo tacanho, no utilitarismo estúpido e no egoísmo narcisista. Ou seja, a burrice passou a ser produzida socialmente e de modo necessário. Apenas com a burrice o capitalismo pode prevalecer.
É este o motivo de os caricatos governantes acima citados terem saído de um reality show e do baixo clero da politicalha para o exercício de um poder para o qual não tinham a mais ínfima qualificação. Eles são expressão da burrice socialmente necessária produzida pelo capitalismo.
Mas, como o filme nos mostra, esta burrice será também o fator de colapso deste mesmo capitalismo, incapacitado de achar respostas para superar seus próprios limites.
Mais do que um filme a respeito do aquecimento global, do negacionismo ou de um meteoro caindo na Terra, Não Olhe para Cima é um filme a respeito do colapso cultural, ético e ideológico da sociedade capitalista. (por David Emanuel Coelho)
Um comentário:
Assisti por causa do blog. E gostei!
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