dalton rosado
O EFEITO DELETÉRIO DO MEDO
"O alerta sobre os neofascistas nos faz perder de vista
a questão real: grandes massas de eleitores, há
décadas, demonstram desconfiança nas
instituições democráticas liberais"
(Antonio Scurati, biógrafo de
Benito Mussolini)
Às vezes revejo cenas do holocausto, que os negacionistas nazifascistas dizem não ter existido, apesar das imagens, provas irrefutáveis e depoimentos de pessoas que traziam (muitas já nos deixaram após terem sobrevivido aos campos de concentração) ou que ainda trazem seus números da morte gravados como tatuagem tosca nos braços.
Fico pensando na passividade da paralisia humana causada pelo medo (e descrédito dos alemães no que estava posto) do exército hitlerista e sua terrível Gestapo, a polícia militarizada do maior criminoso da história da humanidade.
Boçalnaro, o ignaro, ao chegar ao poder político estatal com o discurso de morte (afirmou sem nenhum pejo que a ditadura militar deveria ter matado 30 mil opositores); incensando torturadores; empunhando armas e invertendo os conceitos virtuosos dos ganhos civilizatórios conquistados a duras penas pela humanidade, tornou-se ainda mais escravo da retórica nefanda com a qual saiu vitorioso.
Assim, tenta reproduzir no governo os mesmos absurdos anteriores, sem compreender que as bravatas eleitorais não se adaptam às exigências de bem governar, ainda que governar sob o capitalismo signifique sempre oprimir (mesmo que sob o cabresto mais frouxo da social democracia).
É incapaz, contudo, de perceber que a mesma insatisfação popular causada pela crise do capital em seu estágio de contradição inconciliável, que leva os governos de todos os matizes ao desgaste (vide os protestos de 2013, sob o PT), é a mesma que está afasta as massas do seu projeto golpista.
Não há como administrar a escassez de recursos quando estes são insuficientes (daí o crescente endividamento público mundial) e são estes os únicos instrumentos capazes de prover as demandas sociais, todas elas dimensionados pelo critério da compra de mercadorias, ou seja, com dinheiro.
Ademais, os gastos orçamentários não discricionários (folha de pagamento, gastos orçamentários com educação, saúde e segurança pública, verbas para o sustento dos caros poderes da república e armas militares, gastos com a previdência social deficitária, juros da dívida pública, funcionamento da máquina estatal, pagamento de precatórios de condenações judiciais, repasse de verbas constitucionais aos estados e municípios, etc.) são tão discrepantes da arrecadação de impostos que nada sobra para o atendimento das demandas sociais assistenciais, deixando os governantes sem margem de escolha.
E o Estado falido acaba sendo visto como um mero opressor subvencionado pelos impostos pagos pela população empobrecida.
Não devemos ter medo; não devemos aceitar a ditadura sob qualquer pretexto; não devemos aceitar a democracia burguesa e seus cassetetes democráticos por medo do fascismo militarista que blefa com o fantasma de um golpe no dia 7 de setembro, mero rugir de um leão velho, doente e desdentado.
Só devemos ter medo é de ter medo, como já diziam os gladiadores de Spartacus ao lutarem contra o aparentemente indestrutível poderio militar do império romano.
A fumaça da insatisfação popular com o desastrado governo atual já não esconde o fogo que promoverá a queda política que se aproxima.
Agora, por medo de um poder militar inconsistentemente anunciado (mesmo que ainda existam viúvas dos 21 anos da ditadura militar mais recente) anuncia-se em uníssono o vigor das instituições democrático-burguesas em funcionamento.
Entretanto, quando se olha para a economia mundial e, principalmente, para a economia brasileira, vê-se claramente que a insatisfação popular continuará, representada:
— pelo desemprego estrutural que o capitalismo na sua fase disfuncional (para usar uma expressão da inaceitável nota da entidade dos praças das polícias militares);
— pela volta da inflação causada pela emissão de moeda sem lastro e endividamento público crescente;
— pela paralisia econômica anteriormente existente mas que se intensifica com a pandemia renitente;
— pelos juros altos que pagamos da nossa dívida;
— pela corrupção política endêmica com o dinheiro dito público (que nunca foi e não é do povo, na sua maior parte);
— pela aviltante concentração de renda dos vitoriosos na guerra concorrencial de mercado, que, com a inflação alta, beneficia os donos do capital (principalmente os bancos);
— pela redução de salários da grande maioria dos trabalhadores, causada pela regra capitalista da oferta e procura de mercadorias, que avilta os salários dos empregados (o salário é também uma mercadoria) quando há um mar de desempregados; e
— pela crise hídrica causada pelo aquecimento global decorrente de um modo de produção ecocida que provoca o efeito estufa, encarecendo a energia elétrica hidráulica, desertificando a terra e reduzindo a produtividade de alimentos, além de causar incêndios, furacões, enchentes, secas e nevascas intensas, etc.
Como afirmar-se a governabilidade estatal e a estabilidade das instituições dependentes da economia, quando esta última se assenta sobre uma decomposição estrutural, decorrente do colapso dos seus próprios fundamentos?
Os golpistas de direita, sempre ávidos por poder absoluto, estão à espreita das oportunidades para se apresentarem como salvadores da pátria. Foi assim que o pato da Fiesp gerou seus ovos podres, ora rejeitados pela mesma entidade de classe patronal em nota contra aqueles que supunha representarem os seus interesses, apesar da contradição entre os conceitos ultraliberais e o nacionalismo estatizante que simultaneamente defendiam (me engana que eu gosto)?
E a volta ao governo de pretensos socialistas que apregoam a retomada do desenvolvimento econômico e, portanto, a falácia do capitalismo do bolo grande para que sobrem algumas migalhas para os deserdados da sorte, constitui-se como alternativa viável à depressão econômica irreversível? Não!
É evidente que ambos os projetos políticos representam apenas a velha contenda entre doutrinas que atuam sob uma mesma base de mediação social que atingiu o seu limite interno e externo de expansão e clama por uma nova ordem de produção social.
Marx tinha total razão quando disse que o modo de produção define o caráter das sociedades. Então, faz-se necessário um novo modo de produção que extirpe de vez o caráter segregacionista da forma-valor e do famigerado mercado, ensejando o surgimento de uma nova ordem jurídico-constitucional que lhe seja consentânea.
A esquerda institucional, de olho nas polpudas verbas partidárias, influência junto aos donos do PIB, e definição de quem vai ocupar os cargos que pode abocanhar caso venha a assumir o poder político, aceita o capitalismo (que deseja incompreensivelmente humanizar) de bom grado, e justifica tal posicionamento democrático-burguês como necessária para derrotar o fascismo.
Este é o discurso do medo sobrepujando a necessária coragem revolucionária, mesmo que estejamos num estágio de fim de festa do capitalismo.
Espero, entretanto, que na hora da verdade os medos cedam lugar a posicionamentos que estejam à altura das transformações sociais que a dialética do movimento social está a reclamar.
(por Dalton Rosado)
Entre as mil e uma canções de sua autoria, Que moral é essa? foi
a escolhida pelo Dalton para ilustrar este artigo.
Quem canta é o Gomes Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário