quarta-feira, 12 de maio de 2021

"O TREM DE LÊNIN" O MOSTRA COMO UM PERSONAGEM HISTÓRICO COM INERENTES CONTRADIÇÕES, NÃO COMO UMA ESTÁTUA

Ben Kingsley ora parece mesmo Lenin...
F
oi uma grata surpresa encontrar disponibilizado no Youtube um filme equilibrado sobre episódio revolucionário e com a assinatura de um cineasta competente.

Infelizmente, são raros. A maioria é de obras menores, reverentes em demasia, apologéticas e louvaminhas, como se grandes homens não fossem contraditórios tais quais todos somos, embora tendo momentos de intenso brilho, quando chegam a fazer a diferença para que os acontecimentos históricos se encaminhem numa ou noutra direção. 

Mas, Damiano Damiani não era um diretor e roteirista qualquer. Depois de mais de uma década criando argumentos ou adaptando, dos livros para as telas, criações alheias, estreou na direção em 1960, incursionando pelas comédias à italiana, e depois chamou a atenção da crítica com um drama inspirado em Alberto Moravia (Vidas Vazias, 1963). 

Finalmente, encontrou seu nicho com Gringo (1967) e O dia da coruja (1968): westerns e policiais na linha da contestação política, sintonizados com aquele momento em que a juventude ia às ruas protestar e erguer barricadas contra a desumanidade capitalista e o desencanto que lhe causava o autoritário e burocratizado socialismo real.

Tal fase, que vai até 1985, deixou como saldo filmes dignos e desmistificadores, que eram compreensíveis para,  e apreciados por, públicos menos sofisticados que os dos chamados filmes de arte, curtidos pela intelectualidade; mas, algo repetitivos, tipo viu um, viu todos
...ora está mais para Mahatma Ulianov.

Dois foram de qualidade superior e mereceriam ser mais conhecidos pelas novas gerações:
Confissões de um comissário ao procurador-geral da república (1971) e Só resta esquecer (a.k.a. Todos estamos em liberdade condicional, 1971).

Quando os ventos de mudança não mais sopravam na Europa, Damiani fez alguns filmes relacionados a episódios históricos, inclusive o injustamente ignorado A investigação (1987, sobre a faina de um romano enviado pelo imperador Tibério para descobrir o cadáver de Jesus Cristo e, assim, desmentir sua ressurreição.

Na mesma linha está o filme para ver no blog a que os leitores podem assistir, legendado, nas janelinhas abaixo: as duas parte da minissérie O trem de Lenin (1988), totalizando 206 minutos.

Mostra a célebre viagem de Lenin para voltar em segurança do seu exílio suíço para a Rússia em 1917, depois que o czar Nicolau II abdicou como consequência dos protestos populares iniciados pelos operários de São Petersburgo e que se espalharam pelo país (a chamada revolução de fevereiro, que levou ao poder um governo provisório formado por representantes da nobreza e da burguesia, ao lado de socialistas moderados). 

Face à dificuldade para chegar ao seu país em meio às batalhas da 1ª Guerra Mundial, Lenin (Ben Kingsley, geralmente correto, mas às vezes com cacoetes remanescentes do personagem que o celebrizou, Gandhi) aceita uma proposta do aventureiro Parvus (Timothy West), um gênio sem caráter que inspirara Trotsky na criação da teoria da revolução permanente,  depois se afastara dos revolucionários russos e fora utilizar seus talentos para enriquecer na vida.
Lênin correu riscos e fez a revolução. Martov
refugou e foi para a lata de lixo da História

Parvus convencera o governo da Alemanha a facilitar a passagem de Lenin por seu território, para que, de novo na Rússia, ele entrasse em choque com o governo provisório, enfraquecendo-o. 

A suposição germânica era a de que tal divisão acabasse levando os russos a firmarem uma paz em separado, liberando os alemães para utilizarem seus efetivos no front ocidental.

Astuto, Lenin avalia que era fundamental estar presente no seu país o quanto antes, pois se abria uma janela revolucionária capaz de propiciar a concretização dos ideais que vinham sendo a razão maior de sua existência havia um quarto de século. Mas, ser-lhe-ia inconveniente retornar como um personagem que os adversários poderiam qualificar de espião alemão.

Então, negociou com os ditos cujos a inclusão de outros exilados na viagem, exatamente para não parecer o trem do Lênin e sim o trem dos russos. Oferecendo um lugar até para adversários como os mencheviques (Martov interpretado por Wolfgang Gasser, esperou para ver se a aventura não era uma cilada, tendo depois de correr atrás do prejuízo, obrigado a negociar outra viagem para ele e os seus). 

O trem acabou partindo com 32 passageiros especiais, que viajaram separados dos demais, mas não como peste confinada num vagão lacrado, conforme ironizou Winston Churchill. 

É fascinante ver:
A bela feminista, a lenda viva e a esposa condescendente
— os dotes de grande estrategista e orador de Lenin, que consegue superar brilhantemente a maioria das situações delicadas para o propósito do grupo, não hesitando em decepcionar seus admiradores em estações pelas quais o trem passa, por temer que suas aclamações deem pretexto para os alemães interromperem a viagem;
— seu desapego pessoal, a ponto de ser obrigado pelos companheiros a tomar banho de loja para não chegar a Petersburgo parecendo um mendigo e, pior, sofrendo com ataques de uma doença que ocultava penosamente porque lançaria uma nuvem negra sobre seu futuro político (há dúvidas sobre se seria ou não uma sífilis mal curada, mas a versão oficial acabou sendo a de que ele decaiu rapidamente nos dois anos finais por causa de uma aterosclerose progressiva);
— sua relação complicada com Inessa Armand, revolucionária, feminista, formada em economia e que escrevia sobre literatura (Dominique Sanda), uma mulher à frente do seu tempo, que tudo indica ter sido mesmo amante de Lênin, embora isto haja sido provavelmente deletado das biografias da era stalinista para não admitir-se a existência de uma nuance humana no revolucionário perfeito; e
— a resignação com que Zinoviev (Paolo Bonacelli) e a esposa Nadia Krupskaya (Leslie Caron) aceitam tudo que parta do grande homem, mesmo quando tal subserviência lhes é constrangedora, exatamente como age hoje o séquito do Lula no PT...

Gente de verdade é assim, tem necessidades humanas, não está fazendo História o tempo todo. Estátuas imponentes só servem para enfeitar (ou enfear) as praças públicas. (por Celso Lungaretti)

3 comentários:

SF disse...

Bom filme, Celso.
Senti-me como se também estivesse chegando ao final de uma longa viagem quando ele acabou.
Méritos do diretor e do editor.
Cortes precisos, quase nenhuma cena sobrando!
***
A lição que extraí da estória, contada na película, foi que a múmia já estava mumificada, no personagem "Lenin", antes de ficar exposta na praça vermelha.
Seu zelo com as aparências, a construção da imagem de uma vida simples, pura, fiel à companheira, à revolução, e outros clichês, mostram o quanto ele era apenas um fantoche, se não de outrem, de si mesmo, do personagem que interpretava a soldo.
Acredito que o roteirista minimizou ao máximo o envolvimento dos capitalistas na saga Leninista.
E não teve coragem de dizer com todas as letras que ele era um pau-mandado, mas, na cena da parada em Berlim e na fala de Iniessa, ele deixou bem claro a quem serviu o mumificado.
Viva a revolução e depositem o dinheiro nas minhas contas nos bancos suíços!
Fazer uma revolução comunista custa dinheiro!
***
Quer coisa mais russa que a mulher do líder carregando um samovar?
O cara era bom...
***


celsolungaretti disse...

Prezado,

o Damiano Damiani realmente deu de goleada nos diretores que apenas endeusam seus cinebiografados.

Quanto ao Lenin, você está sendo um pouco injusto ao tirar conclusões baseado apenas na sua visão do filme (há outras).

Na verdade, Lenin era mesmo austero, não ligava para luxos e confortos, vivia para a causa. Conheci muitos assim na VPR. Nunca foi dinheiro o que ele queria, mas, acima de tudo, deixar sua marca na História.

À força do instinto, no entanto, Lenin não resistiu. Pegava mesmo mal para um bolchevique ter uma amante sofisticada como a Inessa, magoando a fiel Nadia, que sacrificava seu orgulho e se mantinha zelando devotadamente pelo grande homem.

Vi essa mesma situação com o Lamarca. Mandou esposa e prole para Havana, o que tinha mesmo de fazer, mas aí não resistiu aos encantos da Iara Iavelberg, também uma mulher mais requintada do que a esposa que ele tinha. Havia companheiros que o criticavam por isso e ele sempre reagia com azedume, prova de quanto sentia-se desconfortável com tal situação.

Mas, privando-se de tanta coisa e correndo tantos riscos em nome da causa, eu acho compreensível que tanto o Lenin quanto o Lamarca se julgassem merecedores de uma pequena compensação.

De resto, é óbvio que fazer uma revolução custa dinheiro. Mas, eu nunca soube que o Lenin fosse acusado de malversação da grana destinada à causa. Nem os piores inimigos ousavam bater nessa tecla.

Sua ansiedade em voltar logo à Rússia é compreensível. Afinal, ele percebia que estava prestes a acontecer aquilo pelo qual ele lutava havia uns 30 anos. Quem se resigna a ficar longe do palco dos acontecimentos numa situação dessas?!

Devido à ascensão do Stalin após sua morte, a historiografia comunista concedeu-lhe méritos exagerados, para tirar os louros que cabiam a Trotski.

Lenin foi o principal criador do partido revolucionário e o homem que estruturou o novo governo.

Mas, quem comandou a tomada do poder e conseguiu defender o novo regime dos ataques de inimigos externos e internos numericamente muito superiores em efetivos e recursos foi Trotski.

Mais importante do que o trem do Lenin foi o trem no qual Trotski praticamente morava durante a guerra contra esses inimigos, utilizando-o para locomover-se rapidamente, com reforços, para os campos de batalha nos quais a ameaça inimiga era maior em cada momento.

Só sua formidável habilidade militar (adquirida na leitura de obras dos ou sobre os maiores estrategistas da História, pois experiência anterior ele não tinha nenhuma) e a incapacidade dos inimigos de se unirem sob um único comando salvaram a revolução nascente. O cinema continua nos devendo um filme sobre o trem que Trotski utilizou como seu quartel-general ambulante.

O filme mostra Lenin sofrendo ataques de sua doença já em 1917. Ao morrer, em janeiro de 1927, ele tinha apenas 53 anos. A vida de revolucionário o consumiu.

Para mim, um fato pouco conhecido mudou a história da Rússia e do próprio mundo, além de como alterou o destino de Lenin e Trotski.

Ambos tinham plena consciência de que a Rússia não estava preparada para a revolução, que deveria servir para um país desenvolvido utilizar seus recursos de forma a beneficiarem toda a população e não serem usurpados por uma minoria em detrimento da esmagadora maioria.

Mas, quando a oportunidade da revolução apareceu concretamente à frente deles (bastava estender a mão e agarrar!), os dois vacilaram. Houve uma intensa discussão nas esferas dirigentes do Partido Bolchevique sobre as consequências de uma tomada de poder, em país tão atrasado em termos econômicos.

Enfim, prevaleceu o argumento de que a Rússia não estava mesmo preparada para o socialismo, mas o poderia construir com o apoio da rica e desenvolvida Alemanha, onde a efervescência revolucionária era grande.

celsolungaretti disse...

==================== continuação ===================

Ou seja, a revolução na atrasada Rússia serviria como estopim da revolução alemã, a qual, por sua vez, depois ajudaria a Rússia a construir uma infra-estrutura básica de nação moderna, da qual desesperadamente carecia.

A revolução alemã não aconteceu, o novo regime ficou sozinho e, cercado e hostilizado, por quase toda a Europa, acabaria mesmo tendo de ceder a alguma forma de autoritarismo para conseguir sobreviver.

Terá sido a percepção de que o sonho de sua vida estava derretendo um motivo subjacente da evolução tão rápida da doença do Lenin? Pois, diante de problemas que não podem resolver, é comum os seres humanos morrerem de doenças que pareciam controladas.

E Trotski, que recebeu a carta-testamento das mãos de um Lenin no finzinho de sua vida e não a utilizou? Aconteceria um congresso do partido e Lenin escreveu uma contudente catilinária contra Stalin, conclamando os companheiros a retirarem-no de quaisquer postos de direção.

Os historiadores tendem a aceitar que Trotski acreditou na promessa de Stalin, de que controlaria doravante sua índole autoritária. Acho difícil de acreditar que um homem tão perspicaz engolisse tal lorota.

Bem possível é que, depois de ter sido obrigado a reprimir o levante dos marinheiros que haviam escrito páginas gloriosas da revolução, e sabendo que a situação doravante exigiria um tirano, ele tenha preferido passar à História como o homem que combateu o desvirtuamento da revolução, e não como quem o comandou.

Não destruindo Stalin quando estava com a faca e o queijo na mão, Trotski evitou desempenhar um papel que lhe repugnava e seu destino acabou sendo o martírio dos justos. Terá sido uma escolha premeditada? Nunca saberemos.

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