domingo, 15 de novembro de 2020

PARA REVOLUCIONÁRIOS NÃO EXISTEM TÁBUAS DOS 10 MANDAMENTOS

A questão de nossas táticas poderem ou não discrepar episodicamente dos princípios estratégicos foi colocada pela primeira vez diante de mim no rescaldo da primeira passeata do movimento estudantil no trepidante 1968, em protesto pelo assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto por policiais militares do Rio de Janeiro.

Eufórico por ter-me saído bem no meu batismo de fogo, detestei a beligerância com que facções antagônicas discutiram depois, na Cidade Universitária, se a palavra-de-ordem Mataram um estudante/ E podia ser seu filho era válida ou se tratava de uma concessão ao sentimentalismo pequeno-burguês. Foi um balde d'água fria no meu entusiasmo.

Ora, depois daquela viriam muitas outras passeatas até o funesto 13 de dezembro de 1968 em que foi assinado o Ato Institucional nº 5, um sinal verde para os órgãos de repressão torturarem e assassinarem resistentes a seu bel-prazer. Então, se bem não fez aquela palavra-de-ordem, mal também não deve ter feito...

Ao longo deste mais de meio século, muitas vezes me deparei de novo com tais pendências, geralmente em circunstâncias mais dramáticas.

Caso, p. ex., de um companheiro que, quando a luta pela libertação de Cesare Battisti parecia fadada à derrota no Supremo Tribunal Federal, saiu conclamando os simpatizantes de nossa causa a articularem uma forte pressão sobre o presidente Lula, no sentido de que ele passasse por cima do STF e decidisse imediatamente conceder asilo ao escritor-alvo da perseguição de Berlusconi.

Era uma posição até justificável. Se Lula fosse realmente quem se pensava que fosse, agiria exatamente assim, dando fim imediato àquela odiosa retaliação extemporânea dos neofascistas. Ocorre que, por muitas outras ocorrências e também porque um passarinho nos contava o que o Lula dizia a seus ministros sobre o assunto, sabíamos que ele jamais passaria por cima do Supremo. 

E tal iniciativa seria amplamente capitalizada pelos adeptos da causa italiana (a grande imprensa em peso), na linha de que nós estaríamos tentando virar a mesa por sabermos que seríamos democraticamente derrotados.

Então, para abortarmos no nascedouro tal tiro no pé, tivemos (principalmente a Fred Vargas, eu e o Carlos Lungarzo) de utilizar até o limite a autoridade moral que possuíamos como membros do comitê de solidariedade. 

Fizemos das tripas coração para que os trâmites da democracia burguesa fossem respeitados e cumpridos até o fim. E, apesar da enorme inferioridade de forças, fomos buscar a vitória na bacia das almas, do único jeito que a poderíamos obter. Há momentos em que visões estratégicas, seguidas ao pé da letra, podem ser muito nocivas em termos táticos; nas lutas revolucionárias não existem tábuas dos 10 mandamentos.
Enfim, para não entediar os leitores, apenas acrescento que esta não foi, de jeito nenhum, a única vez em que optei pelo bom senso em detrimento de uma rigidez de princípios que seria desastrosa. Os resultados da minha opção não me fizeram lamentar nenhuma delas.

Mas, sou o primeiro a considerar intransponíveis certas linhas vermelhas, como a de que comunista nenhum poderia mandar os proletários de seu país morrerem nos campos de batalha de um mero conflito capitalista de disputa por territórios e esferas de influência, como foi a 1ª Guerra Mundial.

Assim como comunista nenhum poderia deixar de mandar os proletários de seu país resistirem até a morte ao nazifascismo na 2ª Guerra Mundial.

Então, sou tão avesso à democracia burguesa quanto o bom Dalton Rosado, mas levo sempre em consideração que nosso objetivo último é o seu aprimoramento, substituindo um ordenamento institucional que, em última análise, atende aos interesses de uma classe, por um ordenamento institucional que dê tratamento justo e igualitário a toda a sociedade (o que só ocorrerá quando esta for libertada da tirania do lucro) e que consagre a liberdade plena do ser humano.  

Nunca esquecerei os companheiros valorosos cujas próprias vidas dependeram em determinados momentos das franquias da democracia burguesa como o respeito aos habeas corpus e ao direito de asilo. 

Em 2020 mesmo, antes de o genocida desistir de afrontar dominicalmente o STF e o Congresso Nacional, tivemos de defender os preceitos constitucionais vigentes dos ataques de uma turba de celerados. E a reconquista das ruas foi fundamental para determos a escalada ultradireitista, forçando o Bozo a um recuo. 

Ocupação de posições no Executivo e Legislativo mediante vitórias eleitorais não são intrinsecamente negativas do ponto de vista de um revolucionário: tudo depende de elas estarem sendo consideradas como um objetivo em si (caso do PT) ou apenas como uma ferramenta a mais para acumularmos forças no sentido da ruptura que nos levará à emancipação da sociedade.

Esquerdistas que se embriagam com o poder, suas benesses e mordomias, verdadeiramente não se libertaram da ideologia burguesa, ponto final. Mas, vale lembrar também que carreiristas e oportunistas prosperaram em nossos partidos porque dirigentes irresponsáveis lhes franquearam as portas para o acesso indiscriminado, como o fez o Lula quando precisou deles para ganhar a luta interna no PT contra as tendências marxistas. 

Então, temos mais é de apoiar e aplaudir Guilherme Boulos (São Paulo), Manuela D'Ávila (Porto Alegre), Edmilson Rodrigues (Belém), Lizianne Lins (Fortaleza), Marília Arraes (Recife)  e outros que tais, pois, tendo bons desempenhos eleitorais, nos ajudarão, e não prejudicarão, na luta pelos nossos dois objetivos primordiais neste momento, imensamente mais importantes para nós do que a própria eleição:
— a remoção do genocida descontrolado o mais depressa possível, já que, se negarmos fogo, até janeiro de 2023 brasileiros morrerão às pencas de óbitos que podem ser evitadas; e
— a construção de uma nova esquerda, realmente combativa e anticapitalista, nossa esperança de futuro. (por Celso Lungaretti)

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