sexta-feira, 24 de julho de 2020

NA ÉPOCA DOS FILMES DERIVADOS DAS ÓPERAS-ROCK, SÉRGIO RICARDO CRIOU UM DO TIPO "ÓPERA-CANTORIA NORDESTINA"...

Por coincidência, acabo de encontrar finalmente disponibilizado no Youtube o melhor dos três longa-metragens de Sérgio Ricardo, rodado em 1973 e lançado no ano seguinte: A noite do espantalho.

Serve de complemento ao post-tributo Sérgio Ricado (1932-2020): bom de música e com muito caráter (acesse aqui), no qual inclui cinco vídeos musicais para dar uma ideia da principal vertente do seu trabalho artístico. Mas, o cinema não poderia ficar de fora.

Naquele texto anterior comentei que sua obra como compositor e intérprete deveria ter obtido mais sucesso, mas também aí cabe uma complementação: SR tinha inegáveis talentos nos dois campos e deixou uma obra respeitável em ambos, mas não era o melhor de sua geração. 

Na visão marxista, o sucesso de um personagem, seja na História ou nas artes, premia o indivíduo capaz de preencher um espaço existente naquele momento e que se fecha quando alguém o ocupa.

Assim, p. ex., Taiguara tinha tudo para ser o Chico Buarque dos anos 60 se o próprio não houvesse desistido do curso de arquitetura e apostado todas suas fichas numa carreira artística; Tomzé decerto seria a expressão máxima do tropicalismo caso Gilberto Gil houvesse permanecido administrador de empresas e não tivesse existido o dia que eu vim-me embora na mocidade do Caetano Veloso; e assim por diante. 

Não me lembro de nenhum artista mais talhado para desempenhar o papel de Geraldo Vandré, se este não existisse, do que SR. 

Mas, GV existia e, embora a excelência dos dois como compositores não os diferenciasse muito, o paraibano era mais carismático e passava mais emoção. 

A interpretação de SR tendia a ser contida, enquanto GV era capaz de soltar um grito crescente, lancinante, no meio da música, como em Canção nordestina ("e essa dor no coração/ aaaaaaaaAAAAAAAAIIIIIIIII!!!!!!!!/ quando é que vai se acabar?/ quando é que vai se acabar?").

Lá pelos meus 14 anos, eu a escutava pelo rádio, sem prestar muita atenção, no programa Marcando bossa do Walter Franco, quando esse grito inesperado, desesperado, me arrepiou todo e me chamou para dentro da canção. Foi quando comecei a ter o Vandré como meu predileto na MPB.

Mas, como disse certa vez um bolchevique menos eminente acerca do Trotsky, nem todos podem ser gênios. SR foi ofuscado por GV, que corria na mesma faixa da MPB; e por Glauber Rocha no cinema, quando fez seu trabalho mais ambicioso, A noite do espantalho, evidentemente inspirado em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Não dava para comparar.
Mas, essa visão pueril da maioria dos brasileiros, imortalizada numa frase sarcástica do Nelson Piquet ("o segundo não passa do primeiro dos últimos"), sempre me fez lembrar guris medindo seus pênis para decidir qual o maior. 

Taiguara e SR foram grandes artistas, merecedores de todo nosso respeito; só não tiveram a sorte de Tomzé que, mesmo superado pelos concorrentes tropicalistas nos anos 60, recebeu uma segunda chance do destino em 1990, quando o roqueiro David Byrne se deslumbrou com seu trabalho e o apresentou aos estadunidenses e europeus... o que o fez ser redescoberto no Brasil (!).

A noite do espantalho – que tem, além da influência glauberiana, pontos de contato com as versões cinematográficas das óperas-rock de então – mostra a disputa que o vaqueiro Zé Tulão e o jagunço Zé do Cão travam pelo amor da bela Maria do Grotão (Rejane Medeiros), em meio às mudanças causadas pela chegada do imperialismo (um dragão andrógino) àquele povoado, a convite do horroroso coronel Fragoso (Emmanuel Cavalcanti).

O espantalho (Alceu Valença) comenta os acontecimentos com suas danças e músicas, a maioria composta especialmente para o filme; é linda e foi bem encaixada no contexto a anterior Tema da posse, uma das mais poéticas descrições do ato amoroso na MPB ("Em noite de luar no céu/ Maria do Grotão, ai, se deu/ Um cão latindo ao longe/ Zé Tulão derrubou sua fulô/ E os gemidos de Maria/ Só quem pôde ouvir/ Foi mandacaru"). Outra reaproveitada é Pena e penar, também de 1967.    

Por último: realizar um filme desses, mesmo tendo à disposição, gratuitamente, um majestoso cenário natural (o teatro ao ar livre de Nova Jerusalém, PE, onde artistas locais montam anualmente a Paixão de Cristo) era uma epopeia. SR, com imensas dificuldades financeiras, tirou leite de pedra. É mais um motivo para lhe sermos reconhecidos. (por Celso Lungaretti) 

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