quinta-feira, 2 de julho de 2020

DOIS CAPITÃES ENTRELAÇAM AS MILÍCIAS DO RJ COM OS TORTURADORES DA DITADURA – 3

(continuação  deste post)
Algemas eram parte do seu ofício 
Como continuassem sem obter a complementação de soldo que consideravam imprescindível para manter o padrão de vida do qual não abriam mão, Guimarães e sua turma assaltaram em maio de 1971 um depósito de peças contrabandeadas por outro bando criminoso da região, um de ex-oficiais da PM. 

As duas quadrilhas negociaram, ficando acertado que trabalhariam em conjunto, com a da PE fazendo trabalho de escolta para a dos ex-PMs. 

Mas continuaram se desentendendo: a gangue do Guimarães acabou roubando um caminhão de mercadorias dos relutantes parceiros em 1972, foi denunciada ao comando do 1º Exército e, depois de inocentada graças a uma investigação relapsa, acabaram reativando o acordo e operando juntas por uns tempos.   

Em novembro de 1973, dois PMs armados tentaram confiscar um jipe escoltado pelos bandidos da PE e estes pediram ajuda ao seu quartel. Um camburão saiu de lá, sob as ordens de um sargento, levando poder maior de fogo para tirar da enrascada os contraventores do Exército.

Finalmente, em fevereiro de 1974 o caldo entornou, com a Polícia Federal e o Serviço Nacional de Informações efetuando uma investigação correta, incluindo provas conclusivas, que foi parar nas mãos do então chefe do Estado Maior do Exército, general Sílvio Frota.

A corporação instaurou um Inquérito Policial-Militar contra soldados, cabos, sargentos e quatro oficiais, inclusive o tenente Ailton Joaquim (mais tarde apontado pelo Tortura Nunca Mais como um dos 10 piores torturadores do período) e o Capitão Guimarães.
Torturadores amiúde saíam-se bem nos tribunais militares 

As investigações foram conduzidas com um método muito utilizado pelo Exército; foi a vez daqueles torturadores provarem o próprio veneno. Houve até caso de assédio sexual à esposa de um dos acusados, por parte dos seus colegas de farda!

Como o Élio Gaspari relata em A ditadura escancarada, o caso acabou, entretanto, em pizza:
"Todos os indiciados disseram em juízo que o coronel do 1PM lhes extorquira as confissões. A maioria deles sustentou que, surrados, assinaram os papéis sem lê-los. Num procedimento inédito, os oficiais do Conselho de Justiça decidiram que o processo tramitaria em segredo. Durante o julgamento a promotoria jogou a toalha, e, em maio de 1979, os 21 acusados foram absolvidos. 
O caso voltou ao STM, cinco ministros recusaram-se a relatá-lo, e, por unanimidade, confirmou-se a absolvição. 
A sentença baseou-se num só argumento: ‘Tudo o que se apurou nestes autos, o foi, exclusivamente, através de confissões, declarações e depoimentos extrajudiciais, retratados e desmentidos posteriormente em juízo, sob a alegação de violências e ameaças praticadas durante o IPM'".
"O bicheiro Tio Patinhas consertou a vida de Guimarães"
A carreira militar do capitão Guimarães ficou, no entanto, comprometida. Nos quartéis, ele seria sempre visto como ovelha negra e apenas tolerado. Então, pediu baixa e foi capitanear o jogo-do-bicho, conforme narra o Gaspari:
"Coube ao bicheiro Tio Patinhas consertar a vida de Aílton Guimarães Jorge. (...) O processo do contrabando ainda tramitava (...) quando ele se transferiu formalmente para a contravenção, levando a patente por apelido e diversos colegas como colaboradores. 

Começou como gerente do banqueiro Guto, sob cujo controle estavam quatro municípios fluminenses. Um dia três visitantes misteriosos tiraram Guto de casa e sumiram com ele. (...) Tio Patinhas passou-lhe a banca. 

Em três anos o Capitão Guimarães foi de tenente a general, sentando-se no conselho dos sete grandes do bicho, redigindo as atas das reuniões, delimitando as zonas dos pequenos banqueiros. Seu território estendeu-se de Niterói ao Espírito Santo. 

Seguindo a etiqueta de legitimação social de seus pares, apadrinhou a escola de samba Unidos de Vila Isabel e virou a maior autoridade do Carnaval, presidindo a liga das escolas do Rio de Janeiro. 
Luizinho herdou a posição do pai no carnaval 
Rico e famoso, adquiriu uma aparência de árvore de Natal pelas cores de suas roupas e pelo ouro de seus cordões. Tornou-se um dos mais conhecidos comandantes da contravenção carioca.
Do seu tempo da PE ficou-lhe o guarda-costas, um imenso ex-cabo [o Povoleri, evidentemente] que, como ele, começara no crime organizado da repressão política".
A professora Jaqueline Muniz, cientista política e antropóloga da Universidade Federal Fluminense, explica porque os antigos torturadores foram tão bem recebidos no mundo do crime: 
"O indivíduo se acostuma a ter um grau de autonomia, de liberdade para agir nas sombras. Então, eles não vão ficar sem trabalhar, eles têm uma mercadoria valiosa para vender. Ganham total liberdade e são verdadeiros arquivos vivos dessas práticas ilegais para resolver questões políticas".
Aloy Jupiara, o autor de Os porões da contravenção, une todos os fios:
"Essa lógica de pegar repressores e torturadores para utilizar essa expertise do terror dentro crime organizado foi a mesma lógica que originou e criou as milícias. E que mantém uma ponte com o bicho também".
Guimarães se tornaria figura de destaque no noticiário, tanto no de Geral, por sua atuação carnavalesca; quanto no Policial, várias vezes preso como chefão do jogo do bicho e dos bingos, além de ser acusado de subornar membros do Executivo, Legislativo e Judiciário para atingir seus objetivos. Consta que teria também pertencido a grupos de extermínio do Espírito Santo. 
Uma carreira de sucesso...
Vejam que gracinha esta notícia publicada no blogue O Dia, em 2017:
"Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, um dos fundadores da Liga das Escolas de Samba, fez uma festança no Clube Tio Sam, em Niterói, para comemorar seus 76 anos.  
A luxuosa festa contou com presenças ilustres como Zeca Pagodinho, Martinho da Vila e Jorge Aragão.  
...Entre os presidentes de escolas presentes estavam Regina Celi (Salgueiro) e Anisio Abraão Davi (Beija Flor)". 
Outra figurinha carimbada, Abrão David também aparece ao lado do Capitão Guimarães na relação de 22 contraventores que tiveram sua condenação confirmada em 2ª instância pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região em maio de 2019, como consequência da Operação Furacão. Aliás, a pena de ambos teve redução idêntica, de 47 para 26 anos, porque o delito de formação de quadrilha foi considerado prescrito. 

Evidentemente, os bons velhinhos acabarão não cumprindo esta e outras sentenças, pois advogados hábeis vão conseguir livrar suas caras com manobras protelatórias. 

Então, o Capitão Guimarães continuará desfrutando até a morte sua opulenta aposentadoria, depois de haver transferido os negócios de família para o filho Luizinho; e, claro, de haver repassado seus conhecimentos e expertise militares para a estruturação das milícias do Rio de Janeiro. São as heranças que vai deixar, após uma vida adulta inteira a serviço das más causas...
A versão brasileira das máfias italianas...
.
UMA DEMOCRACIA VENDIDA  Em 2010, as milícias já controlavam 41 comunidades (eufemismo de favelas) do Rio de Janeiro, segundo levantamento do Ministério Público Estadual. O número, claro, deve ter crescido desde então, ainda mais a partir de 2018, quando colocou um pé nas mais altas esferas governamentais...

Elas começaram vendendo proteção e hoje extorquem de várias outras maneiras os moradores das áreas sob seu controle, cobrando, p. ex., comissões sobre venda de botijões de gás, água, TV a cabo ilegal e transporte.

Estão também envolvidas na/no:
— grilagem de terras de reservas ambientais pertencentes à União;
— extração de pedra e saibro nessas áreas;
— venda das terras com registro legal;
— venda de material de construção;
— construção de imóveis;
— furto de petróleo cru que passa pelas tubulações da Petrobras após extração na costa do Rio de Janeiro;
— comercialização de mercadorias ilegais; e
— até no despejo ilegal e derrubada de imóveis de um condomínio para que nele pudessem instalar-se milicianos.
...e quem deveria combatê-la, mas cedeu à tentação do poder.
Ou seja, assim como as várias máfias italianas, as milícias passaram da extorsão camuflada em venda de proteção para uma atuação bem mais ampla e diversificada, combinando negócios ilícitos e outros legais, amiúde recorrendo a pressões, intimidações e até violências para atingirem seus intentos nos dois casos, além de cada vez mais influírem nos três poderes da República e neles se infiltrarem. 

O imperativo de o Estado brasileiro combater decididamente esse tipo de organização criminosa salta aos olhos.

Por último, uma pergunta que não quer calar: por onde anda aquele juiz que, em 2004, escreveu uma razoável tese (acesse-a aqui) sobre a Operação Mãos Limpas (por ele apresentada como "uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa" que "havia transformado a Itália em (...) uma democracia vendida")?  Morreu?

Não, está bem vivo, mas Giovanni Falcone, se também o estivesse, decerto não se orgulharia desse pretenso discípulo. 

Pois, ao integrar o governo Bolsonaro e até contribuir para a implementação de algumas das medidas presidenciais que claramente favoreciam as milícias, ele atuou não para evitar a atuação mafiosa, mas para alçá-la a um patamar mais elevado.

Se o Brasil se tornar efetivamente uma democracia vendida, parte da culpa, sem dúvida, lhe caberá.

Seu nome, todos já devem ter adivinhado, é Sergio Fernando Moro.  (por Celso Lungaretti) 

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