terça-feira, 30 de junho de 2020

DOIS CAPITÃES ENTRELAÇAM AS MILÍCIAS DO RJ COM OS TORTURADORES DA DITADURA – 2

(continuação  deste post)
Como o eclético capitão Guimarães — o torturador que virou bicheiro, bingueiro e carnavalesco, além de haver sido um dos pais das milícias do Rio de Janeiro — acabou caindo em desgraça na caserna e sendo forçado a abrir seu leque de atuação? 

É uma história que merece ser contada muitas e muitas vezes...

Ele conseguiu incorporar-se ao serviço de Inteligência da PE da Vila Militar, embora sua formação o direcionasse para funções bem diferentes ("Os oficiais de Intendência são mestres no suprimento e nas finanças", diz um manual militar) 

Sua equipe, como todas as incumbidas da guerra suja durante a ditadura, auferia ganhos substanciais ao capturar ou matar militantes revolucionários.

Tudo que era apreendido com os resistentes e tivesse algum valor, virava butim a ser rateado entre aqueles rapinantes. 

Jamais cogitavam, p. ex., devolver o dinheiro aos bancos que haviam sido  expropriados  pelos guerrilheiros urbanos. Numerário, veículos, armas e até objetos de uso pessoal iam sempre para a  caixinha  do bando. De mim, até os óculos roubaram.
O cidadão Boilesen organizava a caixinha dos torturadores
Havia também as vultosas recompensas oferecidas pelos empresários fascistas. Estes acertaram inclusive uma tabela com os órgãos de repressão: dirigente revolucionário preso valia tanto; integrante de  grupo de fogo, um pouco menos, e assim por diante.

Quando o estudante Schreier morreu como consequência das sevícias aplicadas por Guimarães e seus comandados, o episódio repercutiu pessimamente no mundo inteiro e até mesmo no Brasil, pois a revista Veja fez uma matéria-de-capa histórica sobre as torturas. 

Foi um mini-Caso Herzog, até porque Schreier também era de ascendência judaica e os judeus não só são particularmente sensíveis ao assassinato dos seus em circunstâncias que fazem lembrar o Holocausto, como detêm enorme influência na imprensa mundial.

Os prejuízos causados por essa má imagem eram óbvios: alguns boicotes aos produtos brasileiros, dificuldades em obter apoio das nações prósperas e de instituições multilaterais para seu desenvolvimento, assim como para a atração de investimentos privados do exterior, entre outras. 

Além de a competição encarniçada entre os serviços de repressão das três Armas frequentemente causarem trapalhadas que afetavam o resultado das operações contra os resistentes...
 A morte de Chael no New York Times e a capa histórica da Veja

Daí as Forças Armadas terem decidido, algumas semanas depois da morte de Schreier, proibir que a unidade de Inteligência de cada Arma fosse à caça por sua própria conta. 

Unificaram o combate à luta armada no quartel da PE da rua Barão de Mesquita (Tijuca), que passou a ser a sede do DOI-Codi/RJ, integrado por oficiais da II Seção do Exército, como era então chamada; do Serviço de Informações da Aeronáutica (Sisa) e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), mais investigadores da polícia civil. 

A equipe do Capitão Guimarães, até como punição pela morte indesejada do Schreier, foi alijada desse vantajoso esquema. Então, quando cheguei preso lá, em junho de 1970, aqueles rapinantes estavam desesperados com a falta de grana.

Tinham se habituado a um padrão de vida mais elevado e já não conseguiam subsistir apenas com o soldo. Tentavam por todas as maneiras convencer seus superiores de que mereciam ser readmitidos no combate à luta armada, em vão.

Eu vinha após mais de dois meses de incomunicabilidade (embora mesmo as leis draconianas da ditadura a limitassem a um só mês) e de torturas; faltava apenas a conclusão do inquérito militar no tocante ao setor de Inteligência que eu comandava. 
Aqui chegavam as viaturas trazendo presos para o inferno do DOI-Codi/RJ

Mas o tenente Aílton Joaquim, decerto com a anuência de seu superior, o Capitão Guimarães, decidiu ultrapassar as ordens do oficial responsável pelo inquérito (um coronel da Divisão de Infantaria) e ordenar a abertura da caixa de ferramentas.

Passei vários dias (minha noção de tempo se tornou imprecisa) numa solitária ínfima e imunda, sem torneira nem chuveiro, com uma latrina de chão. Só de cuecas, tiritava de frio à noite e mal conseguia pregar o olho. Afora isto, durante o dia, novas torturas.

O objetivo deles era provarem aos superiores que os concorrentes da Tijuca não haviam me espremido tanto quanto deveriam, o que seria um trunfo na sua campanha para serem readmitidos nas funções mais lucrativas do esquema repressivo: captura e interrogatório dos combatentes da luta armada.

Quando o cabo Marco Antônio Povoleri (um ex-judoca que pesava 140 quilos), por pura maldade, estourou o tímpano do meu ouvido direito ao reconduzir-me à solitária após uma sessão de torturas, o plano ruiu: não tinham obtido nenhuma informação nova relevante e, ainda por cima, haviam detonado um preso que o responsável pelo inquérito não mandara torturarem, deixando uma lesão permanente como prova incontestável da lambança.
Baixaria marcou visita da Comissão da Verdade ao DOI-Codi/RJ

Aí alguém teve uma famigerada ideia de como poderiam ainda salvar a situação. Quem terá sido? 

O comandante do quartel, major Ênio de Albuquerque Lacerda, praticamente me ignorava e nunca deu as caras durante as torturas, talvez para não parecer estar desacatando as ordens superiores que retiraram sua unidade do combate direto à luta armada. Antes ele se envolvia, tanto que fora um dos quatro assassinos do Eremias.

O capitão Guimarães também estava evitando comprometer-se. Tentou me convencer com argumentos uma ou duas vezes, mas geralmente se mantinha distante.

O tenente Aílton foi quem fez todo o serviço sujo, mas não descarto a possibilidade de que o capitão Guimarães fosse a mão que manejava os cordéis por trás da cortina.

O certo é que a inspiração óbvia foi a enorme repercussão de um episódio bem recente: o companheiro Massafumi Yoshinaga (vide aqui) entregou-se ao Dops paulista e apareceu na TV, sensibilizando os espectadores com seu jeitão de menino, em troca de uma promessa de rápida libertação após ter cumprido sua função propagandística (o pacto foi honrado por Mefistófeles, mas causou ao Massa tamanhos transtornos psicológicos que ele acabaria suicidando-se em 1976).
A ingenuidade de Massafumi o conduziu à loucura e à morte
Dois arrependimentos negociados lhes haviam, portanto, caído dos céus: 
— o de cinco militantes que cumpriam pena no Presídio Tiradentes e sugeriram o acordo, vantajoso para ambas as partes; e
— o do influenciável pupilo do líder do quinteto, por ele aconselhado via pomba-correio (sua irmã) a render-se para salvar a vida. 

Era óbvio que, inexistindo quem mais se prestasse voluntariamente a tal papel, os militares acabariam se decidindo a forçar novos arrependimentos.  

Um ou dois dias depois de eu ter o tímpano estourado, o tenente Aílton passou na solitária e disse que eu nos interrogatórios não revelara nada que já não fosse sabido e, por isso, entraria no pau de novo.

Horas mais tarde, colocaram-me sentado numa mesa bem ao lado da sala de torturas e o tenente Ailton entregou uma caneta e uma daquelas folhas de papel quadruplas que as crianças utilizavam para trabalhos escolares, exigindo que eu escrevesse algo capaz de convencer os jovens a não entrarem na luta armada.

Ao mesmo tempo, começaram a torturar uma aliada da VPR com choques, de forma que ela soltava lancinantes gritos. E torturadores entravam e saíam daquela sala o tempo todo, ameaçando-me e esmurrando-me de passagem (depois lembrei que sempre batiam no corpo, evitando deixar novas marcas no meu rosto).
Medalha do... Pacificador?! 

Nessas condições, com minha resistência minada por algo entre 65 e 70 dias de maus  tratos de todo tipo, escrevi a tal carta aos jovens que ele queriam, acreditando que fosse apenas distribuída à imprensa, por causa do mau estado em que eu visivelmente me encontrava.

Depois de ler a carta, o tenente Aílton me informou que o tratamento dali em diante melhoraria; fui logo transferido para uma cela normal, com cama, cobertor, privada, chuveiro e torneira, recebi minhas roupas de volta e caí num sono profundo nos dias seguintes, coisa de ficar acordado umas 6 horas por dia e dormir 18.  

Certa madrugada, acordaram-me dizendo que me vestisse depressa, pois daquela vez eu iria mesmo ser morto. Colocaram-me numa viatura com escolta e, no percurso, ao passarmos sob uma ponte, foi o capitão Guimarães quem explicou: 
"Estamos te levando para uma TV e você vai falar as mesmas coisas que disse na carta, se não nem sequer volta para o quartel: a gente te mata e abandona o cadáver debaixo de uma ponte como esta".
Logo depois chegamos à TV Globo, no Jardim Botânico, onde foi gravada a entrevista. Não me lembro do que disse nem jamais assisti àquele vídeo. Minha lembrança fixou um detalhe prosaico: ter dito à maquiadora que ela estava fazendo milagres para disfarçar as manchas pretas no meu rosto.  

O companheiro Ivan Seixas me falou na década passada que estava com Lamarca e outros militantes da VPR quando o teipe foi levado ao ar e nosso comandante teria me defendido: "Está na cara que ele foi torturado".

Os torturadores da PE da Vila Militar nem assim recuperaram sua antiga posição no esquema repressivo e tiveram de partir para outros expedientes em seguida, acabando por se direcionar para a criminalidade comum que era sua predestinação e sua vocação.

Talvez como prêmio, O tenente Aílton Joaquim recebeu também sua Medalha do Pacificador, mas este vínculo dele e do capitão Guimarães com o Duque de Caxias (o pacificador em questão) deve até hoje envergonhar os militares dignos.

Tudo isso aconteceu nesta mesma época, faz meio século (por Celso Lungaretti) 
(continua neste post)

2 comentários:

Anônimo disse...

O cabo judoca parece que se entendeu com o capitão e embarcou, também, nos descaminhos do crime. É o que leio nesta publicação de 9/2/2017, do blog "Desmistifico" (https://desmistifico.blogspot.com/2017/02/do-bicho-mafia-como-torturadores-e_82.html):

"O lutador-torturador-fora-da-lei Marco Antônio Povoleri, padrinho de um dos filhos de Guerra, foi preso anos antes ao ser flagrado com um carregamento de 5 carros roubados, que seriam entregues à quadrilha de José Carlos de Carvalho, o Carlinhos Gordo – responsável por 80% dos roubos de carro no Rio. Povoleri cumpriria 4 anos e meio em regime fechado. Suspeitava-se de que tais veículos seriam convertidos em cocaína, a ser distribuída no Brasil."

Marco A.

celsolungaretti disse...

Eu ia chegar no destino dele: pediu baixa juntamente com o Capitão Guimarães e, numa ou noutra notícia, era citado como guarda-costas do chefão, não pelo nome, mas descrito como "um mulato enorme". Só poderia ser o Povoleri.

Para não encompridar muito a coisa, não repeti o que já está no meu livro e em alguns posts deste blog: o Eremias, cercado num sobrado da Vila Kosmos, travou tiroteio durante um bom tempo com os quatro da PE da Vila.

Finalmente, atiraram uma bomba de gás lacrimogêneo e invadiram. O Povoleri deu-lhe uma gravata, mas o Eremias, que estava atordoado, conseguiu então reagir: atirou no braço dele, incapacitando-o para o judô.

Foi este o motivo de o primata me agredir fora da tortura, quando deveria apenas me colocar na solitária: tinha bronca de mim por ser ligado ao Eremias.

É por essas e outras que eu coloquei no post que a criminalidade comum era a predestinação e vocação desses caras.

Os indivíduos que o Exército incumbiu de fazerem o serviço sujo contra nós tinham todos o perfil de criminosos. Eram tão primários que eu nunca cheguei a odiá-los, apenas os desprezava.

Tinha muito mais raiva dos oficiais sofisticados da Inteligência que às vezes tinham a curiosidade de me conhecer porque eu era o equivalente deles no campo inimigo. Falavam bonito e não tinham respingo nenhum de sangue na farda. Mas eram piores do que as bestas-feras, porque eles sabiam o que estavam fazendo, os outros não passavam de imbecis violentos.

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