terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

BREXIT: A MONTANHA PARIU UM RATO.

david emanuel coelho
O SENTIDO DO BREXIT
Consumou-se na última 6ª feira (31)  a retirada do Reino Unido da União Europeia. Conturbada saída, que paralisou o país durante três anos e derrubou dois governos. No final, os britânicos, já cansados do dramalhão, resolveram dar amplos poderes ao palhaço Boris e permitiram a conclusão do processo, antes obstacularizado por impasses parlamentares. 

Mas, qual o sentido do Brexit? Uma questão difícil, cuja resposta demanda uma análise muito mais longa e profunda que a destas linhas. No entanto, é possível perfeitamente fazer um delineamento sobre o porquê da saída do Reino Unido. 

Em primeiro lugar, é bom frisarmos que a União Europeia de modo algum é uma instituição progressista ou humanista. Não é uma internacional, onde países cooperam entre si para o melhor aprimoramento de seus povos.

O que não significa, certamente, não ter ela seus méritos, dos quais o principal é trazer estabilidade política e militar a um continente varado por guerras seculares, duas de níveis de destruição apocalípticas. 

Que França e Alemanha cooperem entre si e resolvam seus problemas pela via do parlamento europeu é muito mais saudável do que se dilacerarem em confrontos bélicos. 

Mas, não podemos esquecer o que a UE é: um conglomerado comercial, antes de tudo. E não um conglomerado qualquer, mas um conglomerado essencialmente franco-alemão. 

Sim, o projeto europeu é um projeto do eixo Paris-Berlim, as duas maiores economias continentais, e que galvanizam em torno de si forças medianas (Itália, Espanha, Suécia, etc.) e anões (Portugal, Grécia, Polônia, etc.). 

A essência do projeto europeu é fazer frente ao imperialismo estadunidense e russo (soviético, na época da guerra fria).

Quando a 2ª Guerra Mundial terminou, os países europeus se depararam com a terrível verdade de que sua época de glória havia chegado completamente ao fim. Duas guerras altamente destrutivas e o posterior desmantelamento do sistema colonial haviam solapado o poderio econômico, militar e político da Europa. O continente  estava agora dividido entre as duas superpotências vitoriosas nos campos de batalha: EUA e União Soviética. 

Diante deste quadro, os europeus rapidamente chegaram à conclusão de que era hora de, esquecendo antigas rixas, se unirem para fazer frente às duas potências que ensanduichavam o continente. Foi quando surgiu a primeira Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, rapidamente transformada em Comunidade Comum Europeia, embrião da futura União Europeia
O Reino Unido não participou do início do processo. Na verdade, com seu milenar isolacionismo, o Reino Unido sempre viu os países continentais enquanto competidores, e não parceiros. 

No entanto, a coisa estava feia em fins da década de 60. A desintegração do Império Britânico, com a independência da Índia e da África do Sul, além da perda de colônias no Oriente Médio e na África, levaram a economia britânica à beira da falência. O país vivia uma autêntica derrocada e via apenas uma chance de dar a volta por cima: entrar na Comunidade Europeia. 

Fez pelo menos três tentativas neste sentido, sendo repelida duas vezes. Tendo afinal conseguido, pôde salvar sua economia com o acesso a um mercado de milhões de pessoas e, mais ainda, às matérias-primas a preços razoáveis que vinham do centro da Europa. 

O Reino Unido, contudo, nunca escondeu que tinha agenda própria em sua participação no bloco europeu. Jamais aceitou muito bem a evolução do bloco de econômico para político e, menos ainda, viu com bons olhos a criação da moeda comum. No fim, ficou como se fosse um apêndice à União Europeia, com um pé dentro e outro fora. 

O motivo para isto é muito simples: os britânicos sempre souberam e levaram em conta que o projeto europeu era essencialmente franco-alemão. Se entraram, foi por necessidade vital, mas jamais aceitaram virar uma colônia de Paris e de Berlim.

Com o decorrer do tempo, a integração cada vez maior dos países do bloco colocou um dilema fundamental para Londres: ou entraria por completo ou sairia de vez. A resposta já sabemos. 

No fim, os laivos imperialistas da elite britânica falaram mais alto e foram determinantes. 

O Brexit não foi, portanto, um divórcio inesperado, estando mais para o fim de um casamento por conveniência, no qual o amor nunca esteve presente de fato. 

Isto quanto à burguesia britânica. E as pessoas comuns? Por que apoiaram?

A falta de engajamento das elites com o projeto europeu certamente teve um papel nisto, fazendo a população média não se enxergar enquanto europeia. Este é um fator importante, mas não o decisivo. 

O decisivo tem a ver com algo semelhante ao que passava o Reino Unido em fins da década de 60, com a diferença de que agora o sofrimento é quase exclusivo às faixas populares. 

Em 1960, a indústria britânica afundava e a burguesia do país via seu futuro sob ameaça. Hoje, já não existem mais indústrias na Ilha, foram todas para a China e a burguesia insular não teme mais o futuro, pois abarrotada de dinheiro, o qual deixa guardado em paraísos fiscais, enquanto curte a vida em algum castelo da Suíça ou numa ilha tropical do Pacífico. 

Para esta burguesia, o problema hoje é outro: as regulações bancárias, trabalhistas e ambientais da UE, que dificultavam seus negócios. Daí ela ela ter amplamente se posicionado pró-Brexit. 

O povo, por sua vez, sofre com a queda de sua qualidade de vida, a destruição dos serviços públicos e o fim de seus empregos. Ao mesmo tempo, vê Bruxelas focando apenas em salvar o sistema financeiro e garantir que os já bilionários continuem assim ou fiquem-no ainda mais. 

Este povo não acredita no projeto europeu porque o projeto europeu não se importa com ele. Nisto, os britânicos não estão sozinhos, compartilhando o mesmo sentimento anti-europeu de gregos, franceses, italianos, espanhóis, belgas, etc. 

Para a classe trabalhadora britânica, o Brexit simbolizou um grito de protesto contra o regime neoliberal, um grito impotente e manipulado, mas não menos sincero. 

Assim como milhões viram em Trump e Bolsonaro a solução para consertar uma sociedade falida, milhões de britânicos viram no Brexit a solução para consertar um sistema que não funciona mais para eles. 

O sentido profundo do Brexit, portanto, é um clamor popular em prol da sua emancipação. Um grito de rebeldia contra um sistema desumano. 

Paradoxalmente, no entanto, o que lhes foi martelado dia e noite como salvação será apenas mais uma etapa de sua trajetória para o fundo do abismo. (por David Emanuel de Souza Coelho)

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