O SENTIDO DO BREXIT
Consumou-se na última 6ª feira (31) a retirada do Reino Unido da União Europeia. Conturbada saída, que paralisou o país durante três anos e derrubou dois governos. No final, os britânicos, já cansados do dramalhão, resolveram dar amplos poderes ao palhaço Boris e permitiram a conclusão do processo, antes obstacularizado por impasses parlamentares.
Mas, qual o sentido do Brexit? Uma questão difícil, cuja resposta demanda uma análise muito mais longa e profunda que a destas linhas. No entanto, é possível perfeitamente fazer um delineamento sobre o porquê da saída do Reino Unido.
Em primeiro lugar, é bom frisarmos que a União Europeia de modo algum é uma instituição progressista ou humanista. Não é uma internacional, onde países cooperam entre si para o melhor aprimoramento de seus povos.
O que não significa, certamente, não ter ela seus méritos, dos quais o principal é trazer estabilidade política e militar a um continente varado por guerras seculares, duas de níveis de destruição apocalípticas.
Que França e Alemanha cooperem entre si e resolvam seus problemas pela via do parlamento europeu é muito mais saudável do que se dilacerarem em confrontos bélicos.
Mas, não podemos esquecer o que a UE é: um conglomerado comercial, antes de tudo. E não um conglomerado qualquer, mas um conglomerado essencialmente franco-alemão.
Sim, o projeto europeu é um projeto do eixo Paris-Berlim, as duas maiores economias continentais, e que galvanizam em torno de si forças medianas (Itália, Espanha, Suécia, etc.) e anões (Portugal, Grécia, Polônia, etc.).
A essência do projeto europeu é fazer frente ao imperialismo estadunidense e russo (soviético, na época da guerra fria).
Quando a 2ª Guerra Mundial terminou, os países europeus se depararam com a terrível verdade de que sua época de glória havia chegado completamente ao fim. Duas guerras altamente destrutivas e o posterior desmantelamento do sistema colonial haviam solapado o poderio econômico, militar e político da Europa. O continente estava agora dividido entre as duas superpotências vitoriosas nos campos de batalha: EUA e União Soviética.
Diante deste quadro, os europeus rapidamente chegaram à conclusão de que era hora de, esquecendo antigas rixas, se unirem para fazer frente às duas potências que ensanduichavam o continente. Foi quando surgiu a primeira Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, rapidamente transformada em Comunidade Comum Europeia, embrião da futura União Europeia.
O Reino Unido não participou do início do processo. Na verdade, com seu milenar isolacionismo, o Reino Unido sempre viu os países continentais enquanto competidores, e não parceiros.
No entanto, a coisa estava feia em fins da década de 60. A desintegração do Império Britânico, com a independência da Índia e da África do Sul, além da perda de colônias no Oriente Médio e na África, levaram a economia britânica à beira da falência. O país vivia uma autêntica derrocada e via apenas uma chance de dar a volta por cima: entrar na Comunidade Europeia.
Fez pelo menos três tentativas neste sentido, sendo repelida duas vezes. Tendo afinal conseguido, pôde salvar sua economia com o acesso a um mercado de milhões de pessoas e, mais ainda, às matérias-primas a preços razoáveis que vinham do centro da Europa.
O Reino Unido, contudo, nunca escondeu que tinha agenda própria em sua participação no bloco europeu. Jamais aceitou muito bem a evolução do bloco de econômico para político e, menos ainda, viu com bons olhos a criação da moeda comum. No fim, ficou como se fosse um apêndice à União Europeia, com um pé dentro e outro fora.
O motivo para isto é muito simples: os britânicos sempre souberam e levaram em conta que o projeto europeu era essencialmente franco-alemão. Se entraram, foi por necessidade vital, mas jamais aceitaram virar uma colônia de Paris e de Berlim.
Com o decorrer do tempo, a integração cada vez maior dos países do bloco colocou um dilema fundamental para Londres: ou entraria por completo ou sairia de vez. A resposta já sabemos.
O Brexit não foi, portanto, um divórcio inesperado, estando mais para o fim de um casamento por conveniência, no qual o amor nunca esteve presente de fato.
Isto quanto à burguesia britânica. E as pessoas comuns? Por que apoiaram?
A falta de engajamento das elites com o projeto europeu certamente teve um papel nisto, fazendo a população média não se enxergar enquanto europeia. Este é um fator importante, mas não o decisivo.
O decisivo tem a ver com algo semelhante ao que passava o Reino Unido em fins da década de 60, com a diferença de que agora o sofrimento é quase exclusivo às faixas populares.
Em 1960, a indústria britânica afundava e a burguesia do país via seu futuro sob ameaça. Hoje, já não existem mais indústrias na Ilha, foram todas para a China e a burguesia insular não teme mais o futuro, pois abarrotada de dinheiro, o qual deixa guardado em paraísos fiscais, enquanto curte a vida em algum castelo da Suíça ou numa ilha tropical do Pacífico.
Para esta burguesia, o problema hoje é outro: as regulações bancárias, trabalhistas e ambientais da UE, que dificultavam seus negócios. Daí ela ela ter amplamente se posicionado pró-Brexit.
O povo, por sua vez, sofre com a queda de sua qualidade de vida, a destruição dos serviços públicos e o fim de seus empregos. Ao mesmo tempo, vê Bruxelas focando apenas em salvar o sistema financeiro e garantir que os já bilionários continuem assim ou fiquem-no ainda mais.
Este povo não acredita no projeto europeu porque o projeto europeu não se importa com ele. Nisto, os britânicos não estão sozinhos, compartilhando o mesmo sentimento anti-europeu de gregos, franceses, italianos, espanhóis, belgas, etc.
Para a classe trabalhadora britânica, o Brexit simbolizou um grito de protesto contra o regime neoliberal, um grito impotente e manipulado, mas não menos sincero.
Assim como milhões viram em Trump e Bolsonaro a solução para consertar uma sociedade falida, milhões de britânicos viram no Brexit a solução para consertar um sistema que não funciona mais para eles.
O sentido profundo do Brexit, portanto, é um clamor popular em prol da sua emancipação. Um grito de rebeldia contra um sistema desumano.
Paradoxalmente, no entanto, o que lhes foi martelado dia e noite como salvação será apenas mais uma etapa de sua trajetória para o fundo do abismo. (por David Emanuel de Souza Coelho)
Nenhum comentário:
Postar um comentário