domingo, 19 de janeiro de 2020

O ÚLTIMO (?) ADEUS DE ANDRÉ MAURO

Toque do editor
Foi uma grata surpresa encontrar este post na vitrine do UOL: fiquei sabendo da existência do Combate Rock, um instigante blog dedicado ao rock e webradio, com apuro jornalístico e que se coloca corajosamente na trincheira da civilização nestes tempos sombrios em que os bárbaros rondam seus muros, à espreita de uma oportunidade para destruí-la.

Entrei em contato com a equipe para expressar minha admiração de velho roqueiro e velho guerrilheiro; acabei convidado para escrever algo sobre minha trajetória e sobre os motivos de a contestação ao sistema ter sido quase uma unanimidade na geração 68 e agora não sê-lo mais.

Na hora de enviar o artigo, ocorreu-me que será provavelmente a última oportunidade de me dirigir ao público roqueiro, matando as saudades do período de 1979/1984, quando o fazia o tempo todo e gostava imensamente do que fazia. Então, resolvi assinar-me com o pseudônimo que então utilizava para manter a censura longe de mim. 
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andré mauro
A PROLE MALDITA DOS HELLS ANGELS
Para quem participou intensamente das jornadas de 1968 e foi fundo nos caminhos que elas descortinaram, é chocante constatar que hoje há roqueiros apoiando o fascismo tosco dos ignaros empoderados. Mas, um pouquinho de reflexão ajudará a entender o fenômeno.

Comecemos parafraseando o Mick Jagger: please allow me to introduce myself, I'm a man of (no) wealth and (some) taste. 

Tinha 16 anos quando comecei a me entrosar com o movimento estudantil, primeiramente no meu colégio da Mooca. Em 1968 já estava entre os líderes da arregimentação secundarista em toda a enorme zona Leste paulistana. E em 1969, aos 18 anos, me tornei comandante estadual de uma das principais organizações guerrilheira que confrontavam a ditadura militar, a VPR do capitão Carlos Lamarca. 

Aprisionado; torturado; sofrendo lesão permanente; quase morrendo em várias ocasiões; amargando a perda (assassinados) de uns 20 companheiros que conheci, inclusive alguns muito próximos a mim, as portas do inferno finalmente se abriram em 1972 e voltei às ruas para tentar juntar os cacos, depois de haver optado por vencer ou morrer e não ter acontecido nem uma coisa, nem outra.
A seção Rock Stars nasceu assim
Foi quando colegas da antiga escola me convidaram para participar de uma comunidade alternativa e, sem nada mais a perder, aceitei de pronto. Nela lambi as feridas, superei traumas e me reconstruí. Conheci as drogas do meu tempo, abri as portas da percepção com o LSD e me fascinei pelo heavy metal de Alice Cooper e Black Sabbath. De certa forma, o rock macabro serviu para exorcizar meus pesadelos dos porões da repressão.

Passara batido pelo rock dos anos 50 porque era muito criança quando Elvis Presley escandalizava os EUA; e pelo dos '60 porque o mundinho encantado dos Beatles não tinha nada a ver comigo, aqueles filmecos ingênuos do quarteto eram um tédio só.

A fase de me ligar nos circos de horrores da tia Alice e do canastrão de reality show durou pouco. Logo descobri roqueiros bem mais afins comigo: Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Joe Cocker, Alvin Lee, Eric Burdon, Eric Clapton, Rolling Stones, praticamente toda a linhagem dos que haviam bebido nas fontes do blues e descartavam a herança do country and western.

A nossa comunidade no Jardim Bonfiglioli se estilhaçou em 1973 e eu juntei os trapos com uma menina, fomos viver em quitinete e fiquei reduzido à rotina de trabalhar em comunicação empresarial durante o dia, transar e escutar meus discos à noite. Repouso do guerreiro, depois de tanto alvoroço.

Em 1979 dei um bico na hibernação e fui buscar outras coisas na vida, partindo para o jornalismo de verdade, principalmente nas áreas de música e cinema. Em pouco tempo me tornei o homem do rock na Editora Imprima, que fazia as revistas Música, Violão & Guitarra e outros títulos menores. 
Minha seção na Música, Rock Stars, de duas páginas logo pulou para quatro. Aí criei uma revista também chamada de Rock Stars. Outra, a Internacional Extra, caiu nas minhas mãos e passou a abordar exclusivamente a trajetória de roqueiros. E pari a Rock Show, a Rock Passion.

Assinava André Mauro, porque continuava na lista negra da ditadura e meu nome real atrairia atenções indesejadas. Basicamente, mantive a abordagem do rock como contestação ao sistema capitalista num período em que ele começava a se transformar em máquina de fazer dinheiro a partir de altos investimentos promocionais e de mega-espetáculos (estava no gramado do Morumbi quando o Queen inaugurou no Brasil a era dos shows em estádios de futebol e captei a mudança dos ventos). 

Mas, o público-alvo da minha editora eram exatamente os roqueiros de raiz, que detestavam Peter Frampton, Abba, Wings, etc. Então, carreguei a bandeira do verdadeiro rock até o final de 1984; cheguei a ter uma breve amizade e a manter muitos papos etílicos com o Raul Seixas; e nunca fui tão feliz como jornalista, mesmo tendo de vender boa parte dos discos que recebia das gravadoras para completar o orçamento. Nada iguala o prazer de amar o que se faz.
Até que meu castelo de cartas desabou mais uma vez, a crise do papel levou a editora a extinguir metade dos seus títulos e não havia mais jeito de eu sobreviver com o que sobrara. Tive de ir ganhar muito mais fazendo um jornalismo do qual gostava muito menos.

No ano 2000, novamente troquei uma posição consolidada pela tentativa de realizar um sonho, o de ser pai biológico, o que não conseguira até então por força de uma existência tumultuada. Essa opção geraria tantas consequências que passei 2004 e 2005 numa penúria quase total, tendo de fazer das tripas, coração para obter logo a anistia de ex-preso político a que tinha pleno direito, mas certas panelinhas privilegiavam os seus integrantes e estavam passando os lobos solitários como eu para trás.

Acabei vencendo a duras penas essa batalha e ela projetou meu nome na web, abrindo caminho para um livro de memórias meu e de minha geração, a partir do qual fui me tornando conhecido principalmente como o principal jornalista que defendia Cesare Battisti e outros perseguidos políticos, como cronista da luta armada e dos combatentes que a travaram e, enfim, como um velho guerreiro que não trocou seus ideais pelas regalias do poder. 
[Existem muitos e muitos outros que também não venderam a alma, mas a imprensa canalha prefere direcionar todos os seus holofotes para os maus exemplos.]

E, enfim, nunca deixo de lembrar que o ex-guerrilheiro Celso Lungaretti é também o ex-crítico roqueiro André Mauro. Tenho idêntico orgulho dessas duas facetas do meu passado.
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OS ROQUEIROS E O BOM COMBATE: O QUE MUDOU DESDE A GERAÇÃO 68? Voltando à questão inicial, o rock do final da década de 1960 identificou-se fortemente com a contestação política e a contracultura porque era o momento em que os jovens se chocavam com as barreiras de sociedades conservadoras e puritanas, nas quais a autoridade dos adultos é que deveria sempre prevalecer, sufocando seus sonhos e seus anseios (além de, nos EUA, estarem sob ameaça de morte na tão repudiada Guerra do Vietnã). 
Era o fim do patriarcalismo e da hegemonia do capitalismo industrial, em processo de transição para a sociedade de consumo e para a ascendência dos setores financeiros e de serviços. Entre uma forma de sociedade que caducava e outra que se instalava, a rebeldia dos jovens foi uma espécie de cunha: o que eles quiseram naquele instante foi avançarem não para outra etapa capitalista, mas  para além do capitalismo.

As melhores cabeças dentre eles perceberam que já existiam plenas condições econômicas de, sem agressões suicidas ao nosso habitat natural, assegurar-se uma sobrevivência digna a cada habitante do planeta, desde que os frutos do trabalho humano fossem distribuídos de acordo com o critério do bem comum, e não usurpados por minorias de privilegiados.

E mais: que isto poderia ser conseguido com uma carga muito menor de trabalho e de estresse para cada um de nós, dando-nos a oportunidade de desfrutar plenamente a existência, não mais como inimigos na luta pela sobrevivência, mas como companheiros fraternos na edificação da harmonia e da liberdade.
Os ventos de mudança sopraram intensamente na Europa e nas Américas, mas não o suficiente. A transição para a sociedade de consumo acabou se completando, mas o capitalismo estagnaria no presente século, incapaz de retomar o crescimento, além de impotente face à escalada do aquecimento global e das alterações climáticas, uma lâmina de guilhotina pendente sobre o futuro de nossa espécie.

Incapazes de entender o que realmente está acontecendo e manipuladas o tempo todo pela indústria cultural, as pessoas se agarram ao populismo dos salvadores da pátria, ao autoritarismo embutido no combate à corrupção, à fé mercantilizada dos novos vendilhões do templo e até à barbárie de milicianos e incendiários.

Mesmo nos idos da juventude paz & amor, existiam os Hells Angels, barbarizando, estuprando e matando. Sua prole maldita nunca foi extinta e hoje se faz mais visível sob o bolsonarismo, que obviamente a estimula e protege. 
Mas por aí só se chegará à entropia, daí ser fundamental que as novas gerações de roqueiros se mirem nos Lennons ("Imagine") e Raulzitos ("Sociedade Alternativa"), jamais nesses rebeldes sem cabeça que pensam estar combatendo o sistema quando apenas favorecem o afloramento do que há de mais bestial e nefasto no sistema. (por André Mauro)   

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante...um momento de regozijo do seu ofício.

A propósito, como você escolheu esse pseudônimo ?

celsolungaretti disse...

Nada a ver com o André Maurois, cuja obra jamais me interessou.

Foi apenas porque meu nome é Celso e na militância usei Júlio, durante longo tempo, como nome-de-guerra. Então, resolvi montar o pseudônimo jornalístico também com nomes de cinco letras.

Sabia que isto jamais ocorreria aos nossos inimigos. Se nem sequer suspeitaram de que o militante Cid e o militante Cesar, da VPR, fossem a mesma pessoa e ninguém menos do que o Lamarca, que quis fazer galhofa com as alusões a El Cid e ao imperador Júlio Cesar, ambos grandes guerreiros.

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