terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A AUTOCRÍTICA DA ESQUERDA, DA QUAL LULA FOGE COMO O DIABO DA CRUZ, PODE COMEÇAR COM ESTE ARTIGO DO FREI BETTO

frei betto
ESQUERDA, O RESGATE DO SONHO
"Nossas quimeras eram acalentadas por utopias"
Pertenço à geração que teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60: Revolução Cubana, Che, Beatles, Rei da Vela, manifestações estudantis, "Alegria, Alegria", Glauber Rocha, McLuhan, revista Realidade, Marcuse, Maio de 68, João XXIII, naves espaciais etc. 

Era a geração dos sonhos. "Sonhar é acordar-se para dentro", lembra Mário Quintana. Estávamos permanentemente despertos. Nossas quimeras não eram acalentadas por drogas, mas por utopias. 

Segundo a teoria psicanalítica, todo sonho é projeção de um desejo. Nossa geração desejava ardentemente mudar o mundo, instaurar a justiça social, derrubar a velha ordem. 

O sonho quebrou-se ao tocar a realidade. A ditadura militar encarou como subversivos nossos protestos e conteve, com cassetetes e tiros, nossas passeatas. Nossos congressos estudantis terminaram em prisões e, escorraçados para a clandestinidade, não nos restou alternativa senão o exílio ou a resistência. 
Tchecoslováquia, 1968: "Não eram os proletários no poder. Era o socialismo de Estado, pai e patrão"
Em nossas utopias os carrascos abriram feridas, e dependuraram nossos ideais no pau-de-arara. O que era canto virou dor; o que era encanto, cadáver. A roda-viva se encheu de medo e o nosso cálice, de vinho tinto de sangue

Nossos paradigmas ruíram sob os escombros do Muro de Berlim. Não era o socialismo das massas nem os proletários no poder. Era o socialismo do Estado, pai e patrão, atolado no paradoxo de agigantar-se em nome do fim iminente da luta de classes. [todos os grifos são meus (CL)] 

O economicismo, a falta de uma teoria do Estado e de uma sociedade civil forte e mobilizada, levaram o rio das fantasias coletivas a transbordar sobre as pontes férreas dos engenheiros do sistema. 

O socialismo real saciava a fome de pão, não o apetite de beleza. Partilhava bens materiais e privatizava o sonho. Todo sonho estranho à ortodoxia era visto como diversionista, ameaçador 
"Democracia consiste em elegermos por maioria a pessoa que há de obedecer àqueles que mandam"
Astuto, o capitalismo socializa a beleza para camuflar a cruel privatização do pão. Aqui, todos são livres para falar; não para comer. Livres para transitar; não para comprar passagens. Livres para votar; não para interferir no poder. 

O Muro de Berlim ruiu e, ainda hoje, a poeira levantada embaça os nossos olhos.

Solteira de paradigmas, a esquerda é uma donzela perplexa que, terminada a festa, não consegue encontrar o caminho de casa. Há muitos pretendentes dispostos a acompanhá-la, mas ela teme ser conduzida ao leito de quem quer estuprá-la

Ansiosa, envereda-se pelo labirinto do eleitoralismo e se perde no jogo de espelhos que exacerbam o narcisismo de quem se maquia no reflexo das urnas. Deixa-se arrastar pela rotatividade eleitoral, onde ideais e programas são atropelados pela caça a votos e cargos. E, quanto mais se aproxima das estruturas de poder, mais se distancia dos movimentos populares 
"Não há futuro para a esquerda sem ética, utopia e coragem de dar a vida pelo sonho"
É bem verdade que, ao assumir a administração pública, investe em programas sociais, aprimora o acesso à saúde, à educação, moradia e cesta básica. Contudo, desprovida de andaimes, não faz dessa massa um novo edifício teórico, alternativo à globocolonização neoliberal que execra a cidadania e exalta o consumismo, repudia os direitos sociais e idolatra o mercado.

A maré sobe – Equador, Chile, Argentina – mas, na praia, pescadores acostumados a selecionar os peixes têm os olhos cegos pelo reflexo do Sol. A história cessou? 

Fora da esquerda, não há saída para a miséria que assola o planeta (1,3 bilhão de pessoas). A lógica do capitalismo é incompatível com a justiça social. O sistema requer acumulação; a justiça, partilha. E não há futuro para a esquerda sem ética, utopia, vínculos com os pobres e coragem de dar a vida pelo sonho

Hoje, o socialismo já não é apenas questão ideológica ou política. É também aritmética. 

Isto porque, sem partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano, os quase 8 bilhões de passageiros dessa nave espacial chamada Terra estarão condenados, em sua maioria, à morte precoce, sem o direito de desfrutar o que a vida requer de mais essencial para ser feliz: pão, paz e prazer

Resta, agora, a esquerda acordar para o sonho. (por Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto)

2 comentários:

Deodato Gomes Costa disse...

Impressionate a beleza e a lucidez expressada neste texto.

Henrique Nascimento disse...

Me pergunto quão próximo atualmente o Frei Beto é de Lula e sua influência sobre o PT. Lembro-me quando ele participou ativamente dos dois primeiros anos do governo Lula (acho que nem dois anos) e saiu do governo sem alarde e rastros. Apenas silenciou-se.

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