andré singer
O ETERNO RETORNO AO PESADELO DA POBREZA
Depois do sonho rooselvetiano, em que imaginamos virar um país de classe média, voltamos ao velho pesadelo da pobreza. É o que mostra o estudo do Banco Mundial recentemente divulgado [Efeitos dos ciclos econômicos nos indicadores sociais da América Latina: quando os sonhos encontram a realidade].
De acordo com o relatório, depois de cair sistematicamente entre 1999 e 2014, o número de pobres aumentou, com 7,4 milhões de brasileiros tendo retornado à condição de carência em 2017.
Analisando o conjunto da América Latina, o organismo multilateral identifica no que chama de a década de ouro (2003-2013), marcada pela elevação do preço das commodities, um avanço nas condições de vida das camadas de baixa renda.
Em seguida, a situação piorou. Lembre-se, p. ex., o relato recente de Sylvia Colombo sobre a Argentina, onde 2,7 milhões caíram abaixo da linha que demarca a pobreza nos últimos seis meses.
13º do Bolsa Família: cresceu importância de eleitores mais pobres |
Na realidade, há elementos para pensar que o quadro é ainda pior do que o medido pelo organismo multilateral.
No caso brasileiro, a pesquisa considera pobre aquele que recebia até R$ 637 ao mês. Isto é, menos do que um salário mínimo, abrangendo 21% da população dois anos atrás.
Conforme argumentei em O lulismo em crise, com base em cálculos do economista Waldir Quadros, deveria se considerar em 33% o número de pobres já em 2015.
Não vem ao caso debater aqui questões metodológicas, pois o importante é constatar o acordo geral em torno do crescimento da pobreza. Mas o tamanho relativo da camada em pauta tem consequências políticas.
É o que explica o fato de a única medida propriamente social concedida pelo governo Jair Bolsonaro em seus primeiros cem dias ter sido a criação do 13º do Bolsa Família. Tal decisão pretende ajudar a reverter a crescente impopularidade do presidente entre os mais pobres, segmento que tende a ser de novo o eixo decisivo do eleitorado nacional.
"austeridade há 4 anos e o ritmo do PIB não sai do 1%" |
Sem prejuízo de merecer apoio qualquer iniciativa que vise proteger aqueles cuja vulnerabilidade é maior, só a retomada do crescimento, com redistribuição da renda, poderá inverter o viés de precarização.
Desde 2015 os ortodoxos prometem a ativação da economia para depois da austeridade. Vivemos nela há quatro anos e o ritmo do PIB não sai do 1%.
Como o ultraliberal Paulo Guedes dobra a aposta na austeridade, prevê-se nada além de 1,5% de elevação em 2019.
Assim, a pobreza vai se agravar, firmando-se outra vez no centro do embate político.
Será ainda em torno de como gerir a economia de modo a realizar a tarefa histórica da integração que as correntes adversárias irão se digladiar no próximo decênio. (por André Singer)
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Toque do editor — Nem sempre é gratificante vermos confirmadas nossas previsões, ainda mais depois de termos falhado nas tentativas de convencer a maioria dos companheiros de que o rumo a seguir era outro.
Nem D. Sebastião voltou, nem Lula é de quem precisamos hoje |
Enfim, o jogo foi jogado e sofremos nossa pior derrota em mais de meio século, só nos restando extrair as lições do desastre:
- a de que os ganhos e pequenas melhoras que obtenhamos sob o capitalismo acabam sendo sempre revertidos adiante, de nada adiantando esfalfarmo-nos para conquistar posições de mando no Executivo e Legislativo, pois não passam de ouro de tolo; e
- a de que, cedendo à tentação do populismo, fomos ao fundo do poço em 1964 e a ele voltamos em 2018, quando já deveríamos estar vacinados contra suas óbvias limitações do ponto de vista de uma real transformação da sociedade.
Mas, como a esquerda brasileira teima em não esquecer nem aprender nada, parte dela ainda insufla um extemporâneo sebastianismo, centrado na figura mais emblemática da desastrosa opção pelo populismo, quando o urgente e necessário é projetarmos novas lideranças, que reentronizem a luta pela superação do capitalismo como prioridade máxima dos que travam o bom combate. (por Celso Lungaretti)
6 comentários:
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Leio e respeito suas análises em virtude do elevado índice de acerto que elas possuem.
Discordo de açambarcar na esquerda a pelegada que, como o PCF em 68, destroçaram os estudantes para garantir as boquinhas.
Enxergo, porém, o estrategista que você é ao evitar confrontos desnecessários com os pelegos, já que a massa de manobra deles ainda pode servir para alguma coisa, mais a frente.
Por favor, corrija-me no que eu estiver errado.
Eu não me simpatizo nem um pouco com a narrativa do André Singer. Acho de uma ingenuidade extrema. Ele mesmo se contradiz quando diz que "só a retomada do crescimento, com redistribuição da renda, poderá inverter o viés de precarização".
e logo em seguida ironiza a política econômica dos "ortodoxos" nos últimos 4 anos que resultou num crescimento pífio. Primeiro, quem começou com essa política "ortodoxa" foi a Dilma ao convidar o Joaquim Levy. Segundo, para a tal retomada do crescimento tem-se que seguir a cartilha imposta pelo capital. No final das contas não propõe nada de interessante. O que ele propõe então? Uma política econômica "heterodoxa"? rsrs
Para mim, o André Singer faz parte "da esquerda que teima em não aprender".
SF,
em seguida à revolução de 1917, os exércitos de mais de uma dezena de nações invadiram a Rússia, que teve, ainda, de combater inimigos internos (favoráveis ao regime deposto).
Trotsky admitiu no Exército Vermelho centenas de oficiais do antigo regime, que se comprometeram a servir lealmente a nova república.
Quando um desses oficiais traiu os bolcheviques, Lênin sugeriu a Trotsky que afastasse todos eles. Mas, quando Trotsky informou quantos eram, Lênin mudou imediatamente de ideia. Simplesmente, os oficiais duvidosos eram imprescindíveis, não haviam como subsituí-los no meio da luta.
Eu penso exatamente assim. Não temos os quadros necessários para criar uma nova esquerda com material humano essencialmente "puro", então teremos, necessariamente, de admitir ao nosso lado muitos que trarão vícios adquiridos nas décadas de populismo.
O importante será lhes incutirmos outros valores. Abs!
Henrique,
eu reproduzi o artigo do Singer por ele ter mostrado com muita clareza que as melhoras conseguidas nos dois governos do Lula já foram quase todas revertidas e a tal "nova classe média" voltou a ser "velha classe pobre".
Tanto que foi este o lado que eu desenvolvi no meu fechamento do post. Porque era exatamente o que eu a esquerda mais consequente cansamos de afirmar lá atrás: se você não altera as relações de poder de uma sociedade, as conquistas momentâneas dificilmente subsistem, daí a necessidade de pegarmos o touro pelos chifres, ao invés de nos resignarmos com as migalhas que o capitalismo em determinados instantes admite conceder.
Abs.
Celso, minha discordância do André Singer é a dele enxergar populismo apenas na direita (quando lhe convém enquanto discurso político de oposição, portanto). Não é a primeira vez que o vejo escrever nestes termos.
É uma armadilha não enxergar a possibilidade de a própria esquerda cair no populismo, na demagogia, como ocorreu em certas ocasiões com o PT, por exemplo. Mas, na condição de petista fanático, é claro que o Singer não admitiria isso. Demônio são sempre os outros.
Tudo bem, mas o fato de esse detalhe ter ficado de fora do artigo do Singer não invalida sua crítica à demagogia rasteira do Bolsonaro ao acrescentar mais uma benesse ao Bolsa Família, depois de a direita ter passado décadas acusando o programa de ser uma esmola petista para comprar votos dos pobres.
Eu sempre combati também o populismo do PT, como a ridicularia toda acerca de uma "nova classe média" que nunca existiu. Excluídos os malabarismos estatísticos e forçações de barra, aquela gente continuava pobre, com a única diferença que já não se via mais como pobre.
Para um revolucionário, essas ilusões plantadas na cabeça dos pobres pelo acesso a alguns itens de consumo, pelos quais enforcam-se em prestações que se perdem de vista, servem mais para plantar na cabeça deles uma falsa consciência.
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