sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

MEU CARO APOLLO NATALI...

...com sua licença poética, permita-me fazer algumas considerações nesse tom do qual você sempre foi um mestre a que tento reverenciar sem a mesma competência.

Aqui as coisas andam óbvias demais para o meu gosto. Todos, unanimemente, aceitam a imposição da miséria como combate à miséria. 

Colegas seus jornalistas afirmam peremptoriamente que não há outra saída senão aprovar a restrição de direitos previdenciários como forma de continuar existindo previdência. É a imprevidência falando em nome da previdência.  

Aceitam-se como óbvio o que é obscuro, inevidente, latente, subentendido, confuso, oculto, encoberto, dissimulado, inacessível, incompreensível, ininteligível, inexplicável, indecifrável, inalcançável, inatingível, inabordável, intratável. 

Desculpe-me a longa adjetivação, mas quem me informou foi o dicionário, como antônimos do óbvio.

Todo mundo sabe que, a continuarem as regras do jogo atual, faltará dinheiro, num prazo curtíssimo, para o pagamento das pensões previdenciárias.

Assim, defende-se o sacrifício das pensões futuras em favor das pensões presentes. Por aqui o futuro mais imediato é cada vez mais sombrio, e implicitamente aceito como promessa de se voltar a ter alguma luz, ainda que essa luz nunca tenha iluminado de verdade (o iluminismo sempre foi uma farsa de clarão de liberdade). 

Essa lógica perversa, a da aceitação do sacrifício em nome da salvação de uma lógica que impõe o sacrifício, é o que chamo de obviedade que se contrapõe ao óbvio. Explico. 
"...uma aceitação do escravo em relação ao escravizador..."

Quando não se pode mais conviver com um determinado modelo de comportamento por sua absoluta saturação, o que se deve colocar em pauta não é a adaptação comportamental a esse processo de saturação, mas uma virada de mesa em relação à própria saturação. 

A solução está na rebeldia e não na capitulação. A crise deve ser a parteira do novo e não de sua acomodação passiva.

Em toda situação de escravidão há uma aceitação do escravo em relação ao escravizador. Os índios das Américas foram mortos na sua maioria por não aceitarem o jugo dos brancos ditos civilizados; morreram em sua grande maioria com dignidade, e a história da humanidade um dia o reconhecerá.  

Às vezes fico a pensar como deveria se sentir um judeu berlinense nos anos 30 e metade dos anos 40 do século passado (cujas agressões agora estão voltando), em sua casa, ameaçado por uma população manipulada pela lavagem cerebral governamental nacionalista e racista que o considerava responsável por todos os males sociais passados e presentes na Alemanha até aquele momento?

Como deveria se sentir prevendo a visita iminente de policiais fardados do regime nazista que, a qualquer momento, invadiriam a sua casa sob algum pretexto fútil e o levariam preso? 
"...ser assassinado sob alegação de legítima defesa dos policiais..."

Que alternativa se apresentava, diante da avassaladora potência opressora do Estado nazista?

Aceitar a prisão absurda e tentar sobreviver num campo de concentração nazista? 

Sair correndo a receber uma bala nas costas, num assassinato oficialmente consentido pela ordem ditatorial vigente? 

Revidar à prisão de revolver na mão e ser assassinado pela mão armada oficial, sob a alegação de legítima defesa dos policiais?

Tentar a indigna postura de delatar outros judeus para parecer aliado útil e ganhar uma sobrevida?

Tentar esconder-se e passar fome, na esperança de não ser achado e sobreviver até o pesadelo acabar?

Cometer suicídio, como muitos fizeram?

Há momentos na vida em que morrer ou matar na legítima defesa da vida é uma forma de se manter vivo, de pé.
"...não se podem discutir as causas da própria violência..."
Aqui no Brasil se prega a licença para o Estado matar em nome da vida, e se admite a letalidade das armas como forma de combate à morte. 

Muitos aplaudem tal direcionamento belicista, já que não se podem discutir as causas de base do própria violência. A defesa dos direitos humanos é tratada como a defesa de direitos inumanos.     

Se acaso estivesse eu numa situação igual à que os milhões de judeus foram submetidos, a minha reação seria de morrer lutando e tentando ofender com uma arma àqueles que estavam a me ofender pelo mesmo critério. Faria igualzinho o que fez o jovem estudante Eremias Delizoicov, que vive como herói nas nossas lembranças.  

Neste sentido não sou pacifista. Aceito a tese da legítima defesa da vida pelos métodos dos que agridem a própria vida. Não aceito dar a outra face ao agressor, mesmo que este tenha uma força imensamente superior. 

Não aceito a política do vão-se os anéis e fiquem os dedos, talvez porque não gosto do valor abstrato dos anéis (talvez goste apenas de sua beleza estética, que pode estar até numa trança de cipó ao invés de num metal precioso). 
"...o sinistro ex-ministro que só dizia nada a declarar..."

Diante do impensável prefiro a tentativa do pensar; diante do impossível prefiro a tentativa de tornar tudo possível. Diante da imprevidência social que assola o mundo, prefiro a alternativa que pode parecer ainda mais imprevidentemente previdente. Prefiro o desconhecido ao conhecido fatídico.  

Mas, como ia dizendo, aqui as coisas andam mesmo diferentes. E para pior.

Temos um porta-voz, general metido a jornalista, que mais parece uma porta sem voz. Aparece para falar e responder, mas com o único objetivo de nem falar e nem responder, numa reedição canhestramente moderna do sinistro ex-ministro Armando Falcão, que somente dizia nada a declarar.  

Temos um presidente que transfere para um filho, justamente o menos importante na esfera do principado legislativo brasileiro ao qual tiveram acesso outros filhos seus, a missão de acusar publicamente com uma mentira a ocorrência de outra pretensa mentira, como forma de se imunizar de uma falcatrua eleitoral que o beneficiou.

Chegamos ao ponto de termos um desgoverno de ultradireita cujo principal dirigente acusa a Rede Globo de ser sua inimiga e proíbe qualquer aproximação de seu ministro demissionário com dita cuja, pois isto causaria má impressão perante as concorrentes.
"...jovem estudante que vive como herói em nossas lembranças..."

Imagine só o conteúdo ideológico das demais concorrentes. Não é mesmo de fazer inveja a Brizola, a direita tratar a Rede Globo como sua inimiga?!

Anuncia-se como medida redentora, capaz de alçar o Brasil aos píncaros da glória da guerra de mercado, um ajuste fiscal que se traduz num apertar de cintos próprio ao receituário que sempre foi repetidamente imposto pelo FMI aos coitadezas do mundo capitalista, mas sem dizer uma linha sobre os escorchantes juros que incidem sobre a nossa dívida pública.

Não precisamos mais do FMI, já que nos colocamos à disposição voluntária de cumprimento dos seus conselhos na base do se quiserem sobreviver, aceitem a miséria do ajuste fiscal como regra de comportamento.

A maré está tão em baixa que, além de presenciarmos o retrocesso civilizatório personificado numa ministra fundamentalista religiosa que quer que se usem cores para a definição dos sexos (tal como faziam os nazistas colocando a estrela de David nos judeus) e num ministro que defende a implantação de uma base estadunidense na Amazônia, acontecem tragédias ecológicas e mortes por acidentes numa sucessão macabra. 

Perdemos personalidades insubstituíveis como Bibi Ferreira e Ricardo Boechat.
"...um governo desastrado e pé frio..."

Tudo já aconteceu em apenas 50 dias. Temos, definitivamente um governo desastrado e pé frio.
                                                         
Meu caro Apollo, 

Aqui, a esquerda parlamentar é de se lamentar (que me perdoe o trocadilho infame, mas não pude evitar). Anda sem ter o que dizer depois de ter estado no poder e dele ter saído sem dar respostas a que veio.

O Lula, ainda preso, recebe um golpe duro do seu mais proeminente auxiliar de governo, o ex-ministro e delator de falcatruas Antônio Palocci, aquele médico que outrora era metido a trotskista e que depois, com seu dedo sujo e duro, indica aos algozes da burguesia a podridão da qual fez parte.

Assim, fico a compreender porque os ratos são os primeiros a abandonar o navio quando o naufrágio é iminente. A política de conciliação com a burguesia para se manter eternamente no poder fracassou tão logo a marolinha se tornou um tsunami. 

Neste pais, ser operário e querer ascender e permanecer no poder, mesmo sendo um poder burguês e mesmo sendo-se a ele subserviente, tem alto preço. 

A se considerarem as suas muitas condenações, Lula poderia até bater o recorde de tempo de prisão de Nelson Mandela, dependendo de quão longevo ele será amargando o cativeiro.
"...aquele medico com seu dedo sujo e duro..."

A burguesia hipócrita se assenhoreou completamente do poder estatal que sempre esteve a seu serviço, e que sempre foi por ela largamente utilizado. 

Mas não acho isso ruim, porque são eles mesmo que devem administrar a falência de sua cidadela institucional, o Estado, para que o povo compreenda a sua função opressora. 

A nós cabe o papel de demonstrarmos a inocuidade de sua existência, e não dele fazermos parte. 

Mas, nem tudo está perdido. Evidencia-se cada vez mais o artificialismo de uma ordem econômica que ora se mantém viva por aparelhos e já entra na UTI e há sintomas de que surge uma nova juventude inconformista mundo afora. 

Ela certamente contagiará a mocidade brasileira, fazendo ressurgir os ventos de mudança do maio de 1968 francês.     

Um abraço saudoso do seu colega de blog e poeta menor, 

Dalton Rosado.
"...aqui na terra tão jogando futebol / tem muito samba, muito choro e
rock'n'roll / uns dias chove, noutros dias bate sol / mas o que
eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta..."

2 comentários:

Anônimo disse...

Você é o Celso Lungaretti propriamente dito?

Obrigado pelos serviços prestados e que ainda presta.

celsolungaretti disse...

Sim, o editor do blog sou eu. Este post, contudo, é do companheiro Dalton Rosado, nosso colaborador permanente. Bem-vindo!

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