dalton rosado
A SÓCIO-SUPERFICIALIDADE
A realidade social está submissa à imagem; a aparência se sobrepõe à verdade; a cópia é mais importante do que o original; a versão do fato é mais importante que o fato; o falso é o verdadeiro; o mentiroso mente para si mesmo e acredita na própria mentira. Ludwig Feuerbach e Guy Debord tinham razão.
A superficialidade social resulta da constatação de que o valor de uso dos objetos servíveis ao consumo humano se subsume ao valor de troca, que por sua vez é a resultante de um modo de produção social ilusório, escravista, segregacionista, assassino.
O que vemos ocorrer a partir disso é a falta de profundidade dos conceitos e uma capitulação social completa à aparência ilusória na qual o abstrato (o valor de troca) domina o concreto (o valor de uso).
Mais vale uma mentira fácil de ser compreendida e absorvida do que uma verdade incômoda, profunda, que implique sacrifícios reflexivos intelectuais e mudanças de posturas individuais e coletivas.
É sob esta areia movediça que se funda (e se afunda) a consciência social (ou a falta dela). Disso já se apercebera Joseph Goebbels, o sinistro ministro da Propaganda de Hitler, sabedor de que ao difundir mentiras em massa pelo recém-descoberto instrumento midiático, o rádio, poderia dominar politicamente a Alemanha.
Goebbles envenenou o povo alemão pelas ondas do rádio |
A mercadoria, esta coisa espetacularmente diabólica com duas personalidades (valor de uso e de troca) dominou o mundo como se tudo se resumisse a uma ilusória jogatina de cassino; seu resultado social é a substituição do concreto sensível pelo abstrato falso e insensível, como se este último fosse o verdadeiro.
Alguém diz que quer varrer o banditismo da realidade nacional e se conluia com bandidos para fazê-lo. O povo, incapaz de perceber a identidade entre postulados aparentemente diferentes mas igualados no seu espírito mais recôndito, deixa-se dominar como zumbi teleguiado pela espetáculo midiático.
Fake news, twitters, manipulações instantâneas de imagens em vídeos, leituras superficiais de conceitos sub-repticiamente indutores e tantas outras informações inconsistentes são consumidas com a rapidez de um fast food, pois, afinal, time is money.
Disse Monteiro Lobato que um país se faz com homens e livros. Pois bem, as livrarias estão fechando as portas porque a reflexão consistente é algo que se tornou enfadonho e desinteressante. É o caso de se dizer que a barbárie se faz, também, com homens imbecilizados por conceitos equivocados mas positivados e incensados pela cultura mercadológica vigente.
Tudo se tornou muito rápido e intenso, com o pensar ficando saturado e incapaz de raciocinar sobre o que está sendo atestado como verdade.
O guru do bolsonarismo diz fumar 2 a 3 maços por dia |
Todos mentem e acreditam que o por eles dito seja verdadeiro, por mais estapafúrdia que seja a afirmação:
— Olavo de Carvalho, o bruxo exotérico do bolsonarismo diz que fumar é bom para a saúde, indica ministros e faz doutrinação ideológica que faz lembrar a nefanda Ku Klux Klan;
— Daniel Ortega vira crente e nega a vida em nome da defesa da vida;
— o presidente destrumpelhado diz compadecer-se do povo venezuelano enquanto mata latinos na fronteira dos Estados Unidos;
— o sistema de crédito mundial cria agências e fundações humanitárias, mas cobra juros escorchantes dos países para os quais alardeia fazer caridade;
— a cruzada justicialista diz ser contra a corrupção, mas aceita e oficializa a corrupção do poder econômico que rouba o valor produzido pelos trabalhadores por parte do capital sob as mais variadas formas;
— descobre-se que os hipócritas arautos da nova política são jovens deputados ou senadores tendentes a formar uma dinastia política nos mesmíssimos moldes das antigas, promovendo o próprio crescimento patrimonial como num passe de mágica;
— os sindicatos bradam contra o capitalismo, mas querem trabalho produtor do capital e mais salários para os seus associados, num processo de retroalimentação da própria lógica do dinheiro (e muitos ainda se dizem marxistas!);
— o liberalismo capitalista prega a livre fruição das regras de mercado, mas socorre os bancos falidos pelo controle monetário estatal com emissão de dinheiro sem valor quando há estouro das bolhas financeiras (nada mais keynesiano do que um liberal na crise);
"a sofreguidão da caça ao dinheiro" |
— o capitalismo prega a democracia liberal como expressão do livre exercício da vontade, desconhecendo a sangrenta mão invisível da ditadura de mercado e sua autofagia concentradora e segregacionista da riqueza socialmente produzida, que transforma todos em obedientes espectadores do espetáculo midiático;
— o recém-empossado governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, critica as construções em áreas de risco, mas nada diz sobre o fato de a mercadoria terra ser inacessível aos assalariados, obrigando-os a recorrerem a moradias precárias cujo custo de construção (mercadoria casa) e infraestrutura urbana é ainda maior que o preço do terreno;
— todos pregam uma reforma previdenciária que retirará direitos de aposentadoria e reduzirá os valores das pensões como tentativa de salvar o Estado da falência anunciada, mas nenhum desses atores vai ao âmago da questão, qual seja o imperativo da superação da forma e conteúdo da relação social alicerçada na forma-valor (aceita-se a penúria como alternativa à penúria!).
Tudo ocorre numa velocidade espantosa. Mas, paradoxalmente, a pressa do mundo da mercadoria esbarra na paralisia do próprio ser humano diante de uma realidade social que o torna, em grande parte, supérfluo.
Uns se assoberbam de tarefas num esforço de produção individual competitiva; outros se veem sem terem o que fazer ou como fazer para sobreviver. Grassa o desemprego estrutural que corresponde à inércia sem pressa das ações individuais e coletivas.
Os veículos congestionam as artérias citadinas e a sofreguidão da caça ao dinheiro esbarra na irracionalidade de um trânsito lento e poluente. Tudo é absolutamente contraditório e superficial, justamente porque a dinâmica do capital é contraditória, mentirosa, superficial e assassina, tanto do ponto de vista material como ecológico.
Brumadinho: o capitalismo destrói e mata! |
As evidências de um modo de ser social que agride a vida materialmente e ecologicamente são discutidas pela mídia de modo igualmente superficial. O que você, caro leitor, está lendo aqui, certamente não encontrará nos veículos midiáticos empresariais.
Isto porque não se pode negar a própria natureza. O que aconteceria a um repórter que, contrariando o(a) chefe de reportagem ou diretor(a) de redação, repetisse o que afirmamos neste blog? Advertência e, caso insistisse em bater na mesma tecla, demissão. Simples assim.
A mídia, vendedora de mercadoria, é a grande correia de transmissão da superficialidade conceitual espetacular que grassa nas (in)consciências populares. Adora reduzir os complexos problemas sociais à mera boa ou má administração governamental... omitindo que é o próprio modo de produção que infelicita a humanidade! E aí vem o Paulo Guedes e faz humor involuntário, ao pretender que o capitalismo nos esteja redimindo.
Se as barragens de Mariana e Brumadinho se rompem, matando centenas de pessoas, é proibido responsabilizar-se a forma-mercadoria e a imperiosa necessidade de realização de lucros sem os quais o capital não sobrevive. Inculpam-se técnicos e dirigentes empresariais, ou, quando muito, algum empresário com ganância exacerbada (como se o lucro, em si, não fosse por natureza ganancioso).
"o empresariado que guiou o PT na descida ao inferno" |
Se o Partido dos Trabalhadores se conluiou com a tradicional burguesia predadora do Brasil no afã de obter dinheiro para fazer face aos pesados custos eleitorais e, assim, perpetuar-se no poder, o defeito é apenas do PT (sem querermos relevar sua culpa evidente) e não do empresariado que o guiou, como cicerone, nessa descida ao inferno.
Se o planeta está sofrendo com o problema do aquecimento provocado por um modo de produção social predatório que impede a dispersão dos raios na estratosfera, que se descubram formas energéticas alternativas de produção, mas nunca se questione o próprio modo de produção que é predatório da natureza por essência constitutiva.
Levando em conta o que se passa no Brasil e no mundo, além da vitória generalizada da iniquidade que analisei neste artigo, fico a me perguntar: como rompermos esse cada vez mais severo amordaçamento da crítica pela manipulação midiática e educacional das consciências?
Mais: por que a esquerda insiste em se descredenciar perante a população com a sua busca do poder político estatal burguês, negando os mais relevantes postulados da justiça social e dando azo à credibilidade do discurso falsamente moralista e historicamente ultrapassado da direita?
A carga de informações agressivas que infesta a web, espalhada principalmente pela direita e seus adeptos (voluntários ou não), transformou o histórico desejo da livre comunicação revolucionária num território do avassalador conservadorismo irresponsável e superficial da informação.
A sócio-superficialidade é o mais novo e recente fenômeno mercadológico midiático de legitimação do poder econômico e dos seus serviçais da política.
(por Dalton Rosado)
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