david emanuel coelho
A DITADURA DE
VOLTA AO PODER
A profundidade de um poço pode ser tamanha a ponto de termos a ilusão de ter chegado a seu fundo, quando na verdade ele ainda está bem longe.
O desastre do governo Dilma nos conduziu ao desastre do governo Temer e este ao desastre do governo Bolsonaro.
Como se fosse um darwinismo ao avesso, o país involui e mesmo conquistas básicas estão ameaçadas. Os ataques aos direitos trabalhistas e sociais são apenas uma antessala dos ataques aos direitos políticos, pois nenhuma regressão econômica pode ser efetiva sem uma correspondente regressão jurídica.
Pela primeira vez na história, a extrema-direita chega ao poder pelo voto direto no Brasil. O fato de nunca o ter conseguido antes é prova tanto da robustez da consciência política nacional, como também da dimensão desastrosa de nossa condição atual.
Em todo lugar, a chegada ao poder da extrema-direita vem como reação a mudanças econômicas, sociais e culturais ditadas pelo próprio movimento contraditório e canibalizante do capitalismo. Muitas vezes, tais mudanças podem levar ao plano da ruptura – e aí acontecem as revoluções –, mas noutras podem ficar em níveis mais ou menos inconclusos, com a ruptura como possibilidade em aberto.
Em geral, a extrema-direita não se alimenta do futuro, pois ela visa frear as mudanças, e não impulsiona-las; por isto, acaba buscando suas forças num passado mistificado, vendido como uma era de ouro de ordem, concórdia, paz e amizade.
No caso do bolsonarismo, tal passado idílico é o regime militar, época na qual supostamente tudo teria sido melhor, sem corrupção, crimes, disputas políticas ou mesmo pobreza.
Era a onipotência militar quem garantia a sobriedade social. Aos agitadores e agentes da desordem, era reservada a tortura, o estupro e a morte.
Não é gratuita a filiação do movimento neofascista pró-Bolsonaro com o regime militar. Não apenas pelo fato de Bolsonaro e seu grupo serem filhotes do dito cujo, mas também pelo DNA do agrupamento social de onde surgiu o bolsonarismo.
Podemos identificar a origem do bolsonarismo em setores da classe média tradicional fortemente afetados pelas mudanças sociais ocorridas no Brasil nos últimos 25 anos.
Tais grupos viveram dias de glórias justamente na época do milagre econômico da ditadura militar e estavam acostumados a um contexto fortemente privilegiado, contando com farta mão-de-obra barata para serviços domésticos – graças ao exército de migrantes que afluíam desde o interior e das regiões nortistas do país –, com empregos públicos e liberais para eles reservados e com espaços de consumo exclusivos nas cidades.
Em suma, levavam uma vida praticamente burguesa, situados a pouca distância da classe abastada e a um fosso de distância da classe trabalhadora pobre.
Após o fim da ditadura militar e no interregno dos governos Sarney e Collor, a situação muda com o reordenamento da economia brasileira no contexto de uma nova fase da globalização. Entradas maciças de crédito, reformulações na estrutura de atendimento social e expansão da rede escolar estouraram a bolha na qual vivia a minúscula classe média tradicional brasileira e a jogaram diretamente num mundo bem diferente daquele que a engendrara.
Ela viu seu antigo status de vida ruir, com a invasão pelo povaréu pobre e trabalhador, de seus antigos espaços exclusivos de consumo, de empregos outrora reservados, além do encarecimento da mão-de-obra doméstica.
Ao mesmo tempo, viu a distância para com a classe alta aumentar imensamente, fruto do salto acumulativo empreendido pelo neoliberalismo. Ou seja, falando em termos gerais, a classe média empobreceu e passou a ter de conviver e competir com gente que até outro dia lavava seu banheiro.
Embora seja um processo iniciado sob Itamar, a reconfiguração socioeconômica do Brasil só amadureceu de fato à época do governo Lula, quando se estabilizou o processo de expansão do crédito e novos programas de inserção social vieram à tona.
Daí o ódio a Lula e ao PT ter começado a tomar livre curso neste período, coincidindo, curiosamente, com um arrefecimento da antipatia aos dois nas classes abastadas, aliviadas em verem o lulopetismo abandonar antigas veleidades revolucionárias.
Daí o ódio a Lula e ao PT ter começado a tomar livre curso neste período, coincidindo, curiosamente, com um arrefecimento da antipatia aos dois nas classes abastadas, aliviadas em verem o lulopetismo abandonar antigas veleidades revolucionárias.
Na verdade, o governo Lula foi marca importante do processo neoliberal de inserção dos miseráveis ao mundo do consumo e de alavancagem astronômica dos lucros do grande capital, sobretudo financeiro. Isto ao custo da estagnação dos setores médios.
Talvez possa estar aí uma razão concorrente para o ódio particular da classe média tradicional ao lulopetismo, visto que grandes setores deste agrupamento eram apoiadores históricos do PT antes da chegada de Lula à presidência.
Contudo, escapou à classe média que o fenômeno sofrido por ela não era fruto deste ou daquele governo e muito menos algo circunscrito ao Brasil. No mundo inteiro, as classes médias tradicionais empobreciam, enquanto segmentos historicamente marginalizados eram incluídos no mercado de consumo e a classe abastada via sua riqueza explodir. Era apenas o neoliberalismo ampliando a concentração de riquezas mediante a financeirização generalizada.
Durante um tempo, a classe média não teve representação política efetiva para desaguar sua insatisfação. Por isto, apelava ao apoio mais ou menos marginal ao PSDB, cujas candidaturas tentavam puxar para uma perspectiva reacionária.
O ponto de viragem, certamente, foi a implosão do sistema político brasileira após 2013, com a posterior ajuda da Lava Jato. Neste momento, os partidos tradicionais perdem sustentação popular e figuras do terceiro e quarto escalão começam a se destacar. Entre elas estava Jair Bolsonaro.
Antes circunscrito a círculos militaristas e neonazistas, a figura do agora presidente começou a ser abraçada pela classe média tradicional, radicalizada no contexto da crise social pós-2013.
No entanto, Bolsonaro só consegue romper os limites da classe média ao abraçar o discurso fundamentalista religioso e se postar como inimigo das transformações comportamentais do país. Com isto, ele consegue atingir a classe trabalhadora afligida pelo desemprego e os homens brancos, atormentados pela crise de seu papel de gênero. A todos ele projeta o passado místico da ditadura, uma época de riqueza, pleno emprego, e na qual mulheres, gays e negros sabiam seu lugar.
O último nó dado por Bolsonaro foi conquistar o coração da plutocracia nacional. Para tanto, abraçou o discurso neoliberal e pró-reformas, garantindo apoio do grande capital e da mídia. Sem dúvida, Paulo Guedes é muito mais que um simples ministro, ele é o fiador do governo, daí a insistência do presidente neofascista em assegurar que Guedes é indemissível.
Em essência, o projeto bolsonarista, lançado pela classe média decadente, é o projeto de retorno à época de glórias do passado, quando o pobre, o negro, o gay e a mulher estavam em seus lugares delimitados. Ou seja, onde a ordem e o limite imperavam.
"A História não gira para trás" |
Não se trata de voltar, mas de ir adiante de modo retrógrado. A função da extrema-direita é garantir a desordem ordenada e, para isso, usa o imaginário do que já se foi.
A ascensão da extrema-direita sempre marca uma reação na superfície, mas, de fato, é a instalação de um momento de travessia, um momento de superação do velho e entrada no novo do fluxo histórico do capitalismo. Uma travessia, no entanto, sempre despótica, obscurantista e sanguinária.
No passado, eram implantados regimes abertamente ditatoriais. Hoje, a ditadura é mascarada de normalidade democrática.
Por ter sido completamente subjugado pelo poder econômico, o sistema político já se tornou opaco às demandas sociais e pouco importa quem sai ou entra num governo, o poder do capital sempre continua mandando. Talvez por isso os regimes ditatoriais de hoje já se não preocupem tanto em suspender eleições ou suspender a ordem legal. Ao contrário, eles usam as franjas da legalidade para instalar a ilegalidade, a democracia para fazer imperar a ditadura.
Cuidado com o que deseja! Pode virar pesadelo... |
No primeiro dia de governo, já foi possível provar desta estratégia, com jornalistas cerceados e Brasília sitiada para a posse de Bolsonaro. Tudo dentro da legalidade. Como também foi dentro da legalidade o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a ida para o governo do ex-juiz Moro.
Também estarão dentro da legalidade as futuras exclusões de professores, o cerceamento à autonomia universitária, ao trabalho da imprensa, à liberdade de pensamento. Possivelmente, aparecerão juristas a demonstrar como é perfeitamente legal destituir ministros do STF, fechar sindicatos ou prender opositores.
Na Turquia, na Hungria, na Polônia, na Rússia e nas Filipinas tudo isso é hoje perfeitamente normal e seus governantes não são considerados ditadores por nossa mídia. Apenas Maduro, que cometeu o crime de, sendo de esquerda, fazer o mesmo que esses outros.
A ditadura com aparência de democracia pode se tornar também a prática do Brasil sob o regime bolsonarista.
O novo presidente, inimigo jurado da democracia, tutelado por grupos igualmente antidemocráticos, tem nas mãos o trunfo de apelar ao passado ditatorial e prometer o éden pelas vias do autoritarismo. Contará com a inércia de um sistema político falido, uma população empobrecida, uma mídia adesista e uma burguesia comprometida apenas consigo mesma.
3 comentários:
Alguém postou como comentário um texto do Olavo de Carvalho, que rejeitei.
Este blog não publica artigos de extrema-direita, salvo se postados pelo próprio autor.
Motivo: conceder o espaço, democraticamente concedemos. Mas, por discordamos visceralmente de tais posições, jamais deixaremos de as contestar.
Eu e os demais autores responsáveis por este blog polemizamos com pessoas, não com citações que qualquer um recorta algures e cola aqui.
Quanto ao Olavo de Carvalho, duvido que ele ainda aceite polemizar comigo. Da outra vez ele se saiu muito mal.
Peco desculpas Celso, nao sou extrema direita, so achei que seria pertinente sua opiniao sobre uma visao divergente do artigo publicado.
Eu é que peço desculpas, caso tenha dado tal impressão.
O que tento evitar é a abertura de precedentes que seriam ruins para o blog. Na esteira da aceitação e resposta a um comentário desses poderia vir um mundaréu de outros, que direitistas recortariam dos espaços deles e colariam aqui.
Nos velhos tempos do Orkut, eles agiam assim. E era uma roubada ficarmos duelando com fantasmas, desgastávamo-nos sem proveito nenhum.
Agora, com mais 15 anos nas costas e, portanto, bem menos pique, não quero reviver a experiência. Foi ruim.
Abs.
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