domingo, 4 de novembro de 2018

"IMAGINEI QUE ESTAVA NUM PAÍS DE AIATOLÁS, AO FIM DE UMA CRUZADA MEDIEVAL AO MODO TUPINIQUIM"

cristóvão tezza
REGRESSÃO FUNDAMENTALISTA
De todas as eleições presidenciais diretas que acompanhei na vida —Jânio, Collor, FHC, Lula, Dilma e, agora, Bolsonaro—, a cena mais impactante será justamente a de domingo passado (28/10), em que o capitão reformado eleito, num cenário improvisado e confuso, transmitido com o padrão de internet discada, em frases truncadas e gaguejantes, todos como que saídos de um bunker clandestino pintado de amarelo, invocou a verdade e Deus para a condução do país. 

Noutro momento, o novo presidente, de mãos dadas com Magno Malta, fechou os olhos e rezou em agradecimento, e em seguida ambos contemplaram o teto baixo em êxtase político-religioso. 

Na memória difusa do momento, lembro que vi na parede uma bandeira torta do Brasil. Ainda sem entender direito o que era aquilo, imaginei que estava num país de aiatolás, ao fim de uma cruzada medieval ao modo tupiniquim, com um Deus escolhido a dedo, no gatilho, acima de todos.

Um evidente exagero meu, ponderei. O sincretismo mental, nossa antropofagia cultural que tudo devora e transforma, e a multiplicidade cultural da sociedade brasileira haverão de suavizar este neo-fundamentalismo dos trópicos, agora simbolicamente militarizado, em cada gesto e fala. Espero que sim. 
"Temo que se troque a química pela alquimia"

De qualquer forma, pressenti naquela cerimônia bruta, no vaivém desencontrado de palavras de ordem unida, na retórica fragmentária e sem sintaxe, a verdadeira (e mais preocupante) quebra de paradigma de que tanto se falou nessas eleições. 

A visão do Estado como proprietário da esfera moral e religiosa da vida do cidadão, mais a (muitas vezes) sincera ignorância dos processos civilizatórios institucionais básicos que sustentam a modernidade política, ou seja, o Estado laico, a separação dos poderes e a imprensa livre são tópicos inéditos e assustadores.

Falou-se tanto em garantir a liberdade e a democracia que parecia que, apenas neste momento iluminado, depois de três décadas de vida constitucional, chegamos a elas, graças a Deus e aos seus soldados.

Sei que há um toque irracional em toda eleição, em geral restrito ao instinto das escolhas pessoais ou à fé política dos grupos organizados. 

Agora parece que a irracionalidade tornou-se o método. Uma autoridade que gravita em torno do novo governo disse a sério que as crianças, doravante, aprenderão também o criacionismo nas escolas públicas; temo que, em seguida, ensine-se a astronomia de Ptolomeu e troque-se a química pela alquimia. 
"O presidente eleito quer nos ver como éramos 50 anos atrás"
A ridícula e estúpida escola sem partido já estimula a denúncia pública dos infiéis. Nesse roteiro, as fogueiras vêm em seguida. É hora de rezar, com verdadeira contrição, para que os contrapesos institucionais do país sejam suficientemente fortes de modo a nos garantir pelo menos o século 20, já que o 21 parece cada vez mais longínquo. 

O presidente eleito também já disse, igualmente a sério, que quer nos ver como éramos 50 anos atrás. O sonho regressivo é a alma das utopias messiânicas, atrás de uma pureza ancestral que jamais existiu.

Todos queremos retornar à infância. O problema é que a infância do Brasil jamais foi boa.
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(por Cristóvão Tezzaficcionista e crítico literário)

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