cristóvão tezza
REGRESSÃO FUNDAMENTALISTA
De todas as eleições presidenciais diretas que acompanhei na vida —Jânio, Collor, FHC, Lula, Dilma e, agora, Bolsonaro—, a cena mais impactante será justamente a de domingo passado (28/10), em que o capitão reformado eleito, num cenário improvisado e confuso, transmitido com o padrão de internet discada, em frases truncadas e gaguejantes, todos como que saídos de um bunker clandestino pintado de amarelo, invocou a verdade e Deus para a condução do país.
Noutro momento, o novo presidente, de mãos dadas com Magno Malta, fechou os olhos e rezou em agradecimento, e em seguida ambos contemplaram o teto baixo em êxtase político-religioso.
Na memória difusa do momento, lembro que vi na parede uma bandeira torta do Brasil. Ainda sem entender direito o que era aquilo, imaginei que estava num país de aiatolás, ao fim de uma cruzada medieval ao modo tupiniquim, com um Deus escolhido a dedo, no gatilho, acima de todos.
Um evidente exagero meu, ponderei. O sincretismo mental, nossa antropofagia cultural que tudo devora e transforma, e a multiplicidade cultural da sociedade brasileira haverão de suavizar este neo-fundamentalismo dos trópicos, agora simbolicamente militarizado, em cada gesto e fala. Espero que sim.
"Temo que se troque a química pela alquimia" |
De qualquer forma, pressenti naquela cerimônia bruta, no vaivém desencontrado de palavras de ordem unida, na retórica fragmentária e sem sintaxe, a verdadeira (e mais preocupante) quebra de paradigma de que tanto se falou nessas eleições.
A visão do Estado como proprietário da esfera moral e religiosa da vida do cidadão, mais a (muitas vezes) sincera ignorância dos processos civilizatórios institucionais básicos que sustentam a modernidade política, ou seja, o Estado laico, a separação dos poderes e a imprensa livre são tópicos inéditos e assustadores.
Falou-se tanto em garantir a liberdade e a democracia que parecia que, apenas neste momento iluminado, depois de três décadas de vida constitucional, chegamos a elas, graças a Deus e aos seus soldados.
Sei que há um toque irracional em toda eleição, em geral restrito ao instinto das escolhas pessoais ou à fé política dos grupos organizados.
Agora parece que a irracionalidade tornou-se o método. Uma autoridade que gravita em torno do novo governo disse a sério que as crianças, doravante, aprenderão também o criacionismo nas escolas públicas; temo que, em seguida, ensine-se a astronomia de Ptolomeu e troque-se a química pela alquimia.
"O presidente eleito quer nos ver como éramos 50 anos atrás" |
A ridícula e estúpida escola sem partido já estimula a denúncia pública dos infiéis. Nesse roteiro, as fogueiras vêm em seguida. É hora de rezar, com verdadeira contrição, para que os contrapesos institucionais do país sejam suficientemente fortes de modo a nos garantir pelo menos o século 20, já que o 21 parece cada vez mais longínquo.
O presidente eleito também já disse, igualmente a sério, que quer nos ver como éramos 50 anos atrás. O sonho regressivo é a alma das utopias messiânicas, atrás de uma pureza ancestral que jamais existiu.
Todos queremos retornar à infância. O problema é que a infância do Brasil jamais foi boa.
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(por Cristóvão Tezza, ficcionista e crítico literário)
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