segunda-feira, 17 de setembro de 2018

SE A VERDADE É REVOLUCIONÁRIA E A MENTIRA É FASCISTA, COMO DEVEMOS QUALIFICAR AS NARRATIVAS DO PT?

Em que momento o Peru tinha se f...?, pergunta Mario Vargas Llosa na abertura de seu melhor romance, Conversa na Catedral

Aplicada ao PT, a indagação tem muitas respostas possíveis: quando abdicou da luta de classes e passou a nortear-se pela conciliação de classe; quando trocou a praça que é do povo como o céu é do condor pela Praça dos Três Poderes que está para os poderosos como os esgotos estão para os ratos; quando deletou a austera moral revolucionária e passou a emporcalhar-se com a amoralidade do capitalismo terminal, etc.

Por último mas não menos importante, quando deixou de falar a verdade para o povo e, igualando-se aos partidos podres de uma sociedade podre, oPTou pelo utilitarismo e pelas narrativas convenientes.

Cansei de alertar que, por tal caminho, o PT perderia o seu maior patrimônio, mais importante inclusive do que a conquista de presidências da República: a credibilidade.

Assim foi com o desfecho calhorda que o partido deu ao caso Paulo de Tarso Venceslau x Roberto Teixeira (vide aqui), sacrificando o militante honrado para preservar a maçã podre. Justificativas foram inventadas para tentar explicar o inexplicável, o precedente que equivaleu a escancarar as portas para a corrupção. Quem se deu por satisfeito com elas? Os fanáticos que engolem qualquer lorota e os despersonalizados que não ousam marchar contra a corrente.

Veio a Carta ao Povo Brasileiro de 2002 (vide aqui),  em cuja redação, conforme veio à tona no ano passado, colaborou inclusive... o corruptor-mor Emílio Odebrecht! 

Tratou-se de um compromisso assumido pela candidatura presidencial de Lula  com "o respeito aos contratos e obrigações do país". Ou seja, se atrás de cada grande fortuna sempre há algum crime, este era antecipadamente perdoado e olvidado... 

E, ao invés de confrontar a classe dominante e seus privilégios, responsáveis pela desigualdade econômica gritante em que padeciam os explorados, Lula se propunha a manter com os exploradores uma "ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade". 

Mas, esta leitura crítica era a que faziam os lúcidos, os coerentes e os corajosos. A militância foi convencida de que se tratava apenas de um recuo momentâneo e não de uma mudança qualitativa a partir da qual os inimigos de classe passariam a ser tratados como companheiros de luta (enquanto muitos ex-companheiros de luta, vale lembrar, vinham sendo tratados como inimigos desde a década de 1980, quando o PT começou a expurgar as tendências de esquerda). 

Guardadas as proporções, do ponto de vista ideológico foi um episódio tão aberrante quanto o pacto entre a União Soviética e a Alemanha nazista em 1939, que deixou Hitler com as mãos livres para conquistar quase toda a Europa ocidental. Também então Stálin e seus cúmplices criaram narrativas para fazerem passar um pecado ideológico mortal por um pecadilho venal, tendo a maioria dos comunistas, por ingenuidade ou por medo, se calado.
A verdade sobre Neca Setubal. O PT oPTou pela mentira

No poder o PT se posicionou, com relação aos acontecimentos do exterior, segundo os abomináveis critérios geopolíticos, em contraposição aos valores revolucionários: passou a minimizar as práticas hediondas de alguns dos piores carrascos no poder, mandando às urtigas os direitos humanos. 

E mentia descaradamente ao minimizar carnificinas e torturas, atribuindo-as à desinformação insidiosa da indústria cultural (que existe, mas não serve como desculpa genérica para todos e quaisquer governantes que usam e abusam da força bruta para manter subjugados seus povos).

À medida que ia projetando uma imagem cada vez mais populista e demagógica, o PT se distanciava dos formadores de opinião e perdia a capacidade de convencer os cidadãos dotados de raciocínio crítico. Ao invés de fazer autocrítica e mudar suas práticas, exacerbou-as. Passou a trombetear mentiras capazes de fazerem corar um frade de pedra (como se dizia antigamente).

Assim agiu na campanha presidencial de 2014, quando, para desconstruir Marina Silva, não se vexou de lançar a acusação fajuta de que ela seria subserviente ao Itaú, pois tinha o apoio de uma banqueira. De nada adiantou eu provar irrefutavelmente que a tal Neca Setubal era uma herdeira sem participação nenhuma nos negócios do banco, uma senhora bem intencionada que gastava sua rica mesada em projetos educativos e culturais, tendo se engajado da mesmíssima maneira na campanha do petista Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo em 2012. 

Eu não passava de uma voz clamando no deserto, enquanto as redes sociais eram infestadas por uma propaganda enganosa típica de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler. 

[Consumada sua vitória, Dilma ofereceria o posto de ministro da Fazenda para o então mandachuva do Bradesco, Luís Carlos Trabuco, que declinou o convite e indicou para o cargo um diretor de importância mediana no organograma do banco, mesmo assim aceito de imediato pela presidente. Quem era, afinal, que comia na mão dos banqueiros?!]

Daí a uma mentira mais cabeluda ainda foi só um passo: a campanha de Dilma pintou Aécio Neves como o demônio que imporia ao povo brasileiro reformas neoliberais, enquanto a angelical Dilma evitaria tal desgraça. O que ela fez foi, tão logo empossada, entregar o comando da economia para o Joaquim Levy, encarregado de fazer exatamente o que ela prometera impedir que fosse feito. 

O impeachment ocorreu depois de Dilma ter passado o ano inteiro de 2015 apostando numa saída pela direita, inviabilizada, contudo, pelo fogo amigo dos movimentos populares ligados ao PT e pela relutância da bancada de sustentação do governo em defender as medidas impopulares que Levy precisava ver aprovadas para que seu castelo de cartas se mantivesse em pé. Cansado de remar contra a corrente, Levy entregou o cargo uma semana antes do Natal.

Foi também em dezembro que os donos do PIB concluíram ser inútil continuarem esperando Dilma entregar o que lhes prometera: o ajuste fiscal e as reformas trabalhista e previdenciária. Se ela se revelava uma serviçal incompetente, eles a demitiriam. E, como é o poder econômico que manda no Brasil e seus expoentes mais destacados apoiavam a destituição, a destituição ocorreu. 
Isto foi um verdadeiro golpe de Estado...

Dentro da Constituição, pois cumpriu, uma por uma, todas as etapas prescritas para um impeachment presidencial; e, embora a maquilagem das contas públicas até então não tivesse resultado em punição tão extrema, o certo é que se tratou de algo inusual, mas não ilegal. O tradicional dois pesos e duas medidas.

Qual era a verdadeira lição a tirar-se do episódio, num enfoque de esquerda? A de que a democracia brasileira não passa de uma encenação mambembe, na qual o poder econômico detém os cordéis que movimentam os fantoches. Então, de que adianta continuarmos apostando todas as fichas na eleição de presidentes da República, como o PT vem fazendo nas últimas décadas? 

Ficara cabalmente comprovado que eles mais não são do que as figuras de proa incumbidas de cumprir funções cerimoniais e com autoridade apenas para gerenciar o varejo, enquanto as principais decisões  macroeconômicas são ditadas pelo grande empresariado e, quando não obedecidas a contento, levam ao defenestramento de gerentões e gerentonas.

Mas, era tarde demais para o PT reassumir-se como partido combativo e realmente dedicado à causa dos explorados. Preferiu continuar lutando encarniçadamente por posições de poder subalterno dentro do capitalismo (e as benesses delas decorrentes) e mandando às favas todos os escrúpulos de consciência, como fez Jarbas Passarinho há meio século.

Daí, p. ex., a desfaçatez com que continua martelando para a sociedade brasileira a narrativa do golpe e a narrativa do preso político, pois precisa jogar o tempo todo poeira nos olhos dos cidadãos, como forma de evitar que seus erros crassos e terríveis dos últimos anos sejam questionados e dele exigida a autocrítica da qual vem fugindo desde 2016. 
...e esta chanchada de mau gosto, apenas a versão piorada do Domingão do Faustão.
A recente entrevista de Fernando Haddad no Jornal Nacional foi simplesmente patética. O antigo discípulo da Escola de Frankfurt afirmando, com a maior cara de pau, que a derrocada econômica sob Dilma se deveu à sabotagem de uns e outros, enquanto omitia que (mais do que tudo) decorreu da extrema e notória incompetência dela mesma!

E a tempestade em copo d'água que o PT armou em torno da exigência da ONU de que Lula participasse da eleição, a que verdadeiramente se reduzia? Rui Martins (vide íntegra aqui), de seu posto de observação privilegiado na Suíça, apurou o que havia de real na exageradíssima versão petista:
"...até o Comitê de Direitos Humanos da ONU, numa recomendação de dois vice-presidentes [tem quatro, um presidente e um total de 18 membros] , defendeu a manutenção de Lula como candidato, mesmo preso, contrariando decisões legais da Justiça brasileira e sem avaliar as consequências internas, caso o Brasil aplicasse a recomendação ainda sem uma análise maior da questão quanto ao seu mérito
Menos, bem menos. Não me engana, que eu não gosto
Porém, o Pacto assinado com o Comitê [no sentido de que o Brasil se obrigaria a cumprir suas decisões], embora aprovado pelo Legislativo, não chegou a ser assinado [nem] por Lula [que era então o presidente, nem por seus sucessores]...
...Para reforçar a imagem de um Lula vítima de perseguição, seus advogados divulgaram [no dia 10/09/2018] um comunicado do que seria uma nova decisão do Comitê de Direitos Humanos em favor da candidatura de Lula. 
Não é isso, trata-se de uma comunicação pessoal enviada aos advogados de Lula, que haviam pedido maiores explicações aos relatores do Comitê sobre a recomendação do 17 de agosto".
De passa-moleque em passa-moleque, o PT descaracterizado deixa perceber, cada vez mais, que suas narrativas tendenciosamente infladas ou meramente falseadas hoje se destinam apenas à produção de impactos imediatos, apostando que não lhes serão cobradas adiante graças à memória curta do cidadão comum. Era exatamente o que Goebbels pregava e o que Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci e George Orwell execravam. 

Quem segue o preceito de que a verdade é revolucionária e dele extrai a ilação de que a mentira é fascista, tem de refletir seriamente sobre os artifícios de que o PT ora se utiliza para manter-se à tona após a interminável sucessão de desastres (como o impeachment da Dilma e a prisão do Lula) e vexames (como a farsa do candidato fantasma) dos últimos anos.

Todos eles decorrentes de suas lambanças, muito mais que de mirabolantes conspirações do inimigo, o qual só aproveitou as oportunidades que lhe caíram no colo, como os revolucionários sempre soubemos que faria se lhe déssemos ensejo para tanto...

3 comentários:

Anônimo disse...

Analise certeira. E nao convem esquecer que eles acreditam de verdade nas proprias mentiras. Um caso para psiquiatras estudarem futuramente.

André Luiz disse...

Nunca comentei aqui, embora seja leitor assíduo há uns dois anos.
Essa é a análise mais lúcida e verdadeira que tive o prazer de ler. Esses falseamentos típicos do PT são de causar irritação física e moral.
Parabéns pela ótima análise. É um prazer poder se deparar com algo realmente honesto nesse oceano de informações e opiniões duvidosas, estranhas e comprometidas. Achei que valeria registar minha impressão.

celsolungaretti disse...

Foi bom você ter escrito, André, isso sempre levanta nosso ânimo.

Você está certo quanto à honestidade. Tudo que fazemos aqui é sem interesse lucrativo. Não entra um centavo para mim e para o Dalton. Então, nada podemos investir além dos nossos esforços. E não temos motivo nenhum para faltarmos com o que consideramos ser verdade.

As minhas motivações são continuar sendo jornalista quando o sistema não me quer mais como jornalista; e dar a minha contribuição para a formação de uma nova geração de idealistas, pois estamos muito carentes deles, até para oxigenar a esquerda brasileira.

O Dalton assume como missão popularizar no Brasil os conceitos da escola marxista conhecida como a da "crítica do valor". E tem prazer em abordar outros assuntos, abrindo o leque de sua atuação.

Sempre que estou desanimado, lembro-me destes versos do Sérgio Ricardo: "cada verso é uma semente / no deserto do meu tempo". É a visão que tenho do blog: serve para espalhar sementes, na esperança de que os contemporâneos e os pósteros as façam florescer.

Abs.

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