DACIOLO CONSELHEIRO:
MESSIANISMO NA ERA
NEOLIBERAL?!
Óbvio, o candidato Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos não passa de um azarão no páreo presidencial. Porém, é inegável ser o cabo o autêntico outsider desta eleição, despertando, enquanto tal, curiosidade e simpatia.
Uma coisa notável na figura de Daciolo é a junção entre fundamentalismo religioso e crítica social.
Não podemos esquecer a história do personagem: cabo dos bombeiros do Rio de Janeiro, liderou uma combativa greve da categoria durante o governo Cabral; seu engajamento social chamou a atenção do Psol, que o filiou e transformou em deputado federal. Após expressões alucinadas de fanatismo religioso (queria colocar a frase todo poder provém de Deus na Constituição) foi expulso do partido.
Entre um e outro discurso delirante, é conhecido por andar sempre com sua bíblia na mão, fazer profecias, denunciar iluminatis e maçons. No entanto, também lutou por melhorias para sua categoria, votou contra as reformas de Temer e não se cansa de atacar a bandidagem instalada no Congresso.
Parece uma figura contraditória, avançado na pragmática de classe, atrasado na visão de mundo. No entanto, de modo algum Daciolo é um personagem bizarro. Ele é exótico apenas para quem desconhece as entranhas do próprio país, mesmo que tais entranhas estejam logo ali na zona norte do Rio de Janeiro.
Na verdade, Daciolo representa um tipo social muito comum nas periferias das grandes metrópoles brasileiras. Muito mais comum, inclusive, que o fundamentalista ultraliberal. Este, o qual Bolsonaro tenta encarnar, está até presente na classe média, mas entre os trabalhadores periféricos ele é uma raridade.
O tipo de Daciolo é o sujeito possuidor de aguda criticidade social – embora intuitiva, de maneira geral –, mas uma visão de mundo profundamente retrograda e alucinada. Claro, nem todos possuem a mesma capacidade de argumentação de Daciolo, mas é por isso que ele é a encarnação do tipo, não seu modelo três por quatro.
Para mais ou para menos, o cabo representa uma figura bem disseminada em nossas periferias: o trabalhador pentecostal. A bíblia é seu guia existencial, formatando sua visão de mundo. É um ordeiro por excelência, abominando revoluções ou subversões da hierarquia. No entanto, possui um forte senso pragmático quando a questão é econômica.
Na história brasileira, só consigo pensar numa figura semelhante em sua mistura de fanatismo religioso e aguda crítica social: Antônio Conselheiro.
É interessante, inclusive, ver a similaridade entre a reação das elites modernistas do fim do século 19 à sua pessoa e a reação atual dos bem pensantes ao fenômeno Daciolo. Em ambos os casos, as figuras são vistas como exóticas, grotescas ou risíveis, mostrando que o Brasil profundo ainda nos permanece ignorado, mesmo tanto tempo depois de Euclides da Cunha.
O líder de Canudos era o resultado da decomposição social do antigo sistema latifundiário do nordeste. Com a abolição da escravidão e o fim do império, o centro econômico e político do país se transfere para o sul/sudeste, deixando hordas de camponeses vagando sem rumo pelo sertão, muitos morrendo de fome. Só eram lembrados pelo recém instalado poder da república na hora de pagar impostos. No resto do tempo, eram completamente invisíveis.
Conselheiro tornou-se o líder dos camponeses abandonados. No regime social falido do pós-ciclo açucareiro, amalgamava visões de mundo de um catolicismo ultraconservador com um agudo ataque às novas elites da república, as quais criavam um país no sul esquecendo-se dos miseráveis do norte.
Não tenho pretensão aqui de insinuar que Daciolo é um novo Antônio Conselheiro, ou outra coisa do tipo. Pretendo apenas mostrar a semelhança entre duas figuras representativas, na história brasileira, de uma junção entre crítica social e profundo fanatismo religioso.
Na verdade, o comum entre ambos é terem sido produzidos em épocas de decomposição social. Conselheiro, na decomposição do antigo sistema latifundiário do nordeste. Daciolo, na decomposição do neoliberalismo.
Não é segredo o pentecostalismo ter se multiplicado fortemente no período neoliberal. As periferias brasileiras foram tomadas por ele.
Impossível esmiuçar a fundo aqui as bases deste fenômeno, mas dá para resumir dizendo que o fundamento do avanço pentecostal é a cisão entre esfera do consumo e esfera da produção, operada pelo neoliberalismo. Em essência, o consumo ilimitado é para poucos, entrando as igrejas para acolher os que ficaram para trás.
Ele assume a crítica religiosa, messiânica e puritana ao estilo de vida hedonista instaurado no mundo contemporâneo – do qual pessoas como Daciolo não participam ou participam apenas de modo limitado –, enquanto, ao mesmo tempo, respondem, na prática, aos ataques perpetrados contra ele na esfera econômica pelo neoliberalismo.
Por isso, não há contradição alguma em Daciolo dizer que “o Senhor é o rei de toda glória” e depois atacar, de forma realista, os interesses da burguesia rentista. A lógica é a mesma, pois, na visão deste grupo social, estar alijado do consumo ilimitado e naufragar na precariedade econômica são duas faces de uma mesma moeda.
De resto, muito se elucubra sobre Daciolo roubar votos de Bolsonaro. Embora o público dos dois não seja exatamente o mesmo, é possível que Daciolo impeça o capitão de crescer.
Bolsonaro, inclusive, deu um enorme tiro no pé ao aderir ao discurso ultraliberal do Instituto Millenium. Acreditou que cairia nas graças do grande capital, mas apenas perdeu a chance de alargar seu eleitorado.
Houvesse adotado um discurso econômico a la Daciolo – atacando a precarização dos trabalhadores – teria crescido em apoio entre a classe trabalhadora. Para nossa sorte, o ex-capitão é um perfeito mentecapto.
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(por David Emanuel de Souza Coelho)
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(por David Emanuel de Souza Coelho)
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