Por Celso Lungaretti |
Este blog jamais poderia deixar os 50 anos da passeata dos 100 mil passarem em branco. Num primeiro momento, pensei até em publicar o trecho do meu livro Náufrago da Utopia a ela dedicado.
Mas, avaliando melhor tal possibilidade, conclui que seria pouco, um relato de quem acompanhou a passeata à distância, mais focado no que rolava no movimento estudantil de São Paulo, meu campo de atuação (daí, no livro, tê-la descrito com base em reportagens jornalísticas e livros).
O que eu não soube por leituras, mas testemunhei e me impressionou, foi a meteórica notoriedade que o Vladimir Palmeira adquiriu entre nós; até então, era uma referência distante.
Também me ficou na lembrança o que o valoroso companheiro José Raimundo da Costa, o Moisés, último comandante da VPR (dissolvida após sua morte), me contou.
O saudoso Moisés |
Àquela altura, perseguido intensamente pela repressão (um desafeto dele se tornara figurão do Cenimar), trabalhava sob identidade falsa como gerente de uma empresa de transportes. E, percebendo que algo muito importante estava para acontecer, não teve dúvidas: foi para o aeroporto, com o terno que estava usando no serviço.
Havia voo disponível, chegou na Cidade Maravilhosa em tempo e deu tudo certo, menos um certo desconforto por alguns manifestantes olharem para ele de esguelha, suspeitando que fosse policial à paisana.
Enfim, dando uma peneirada em tudo que encontrei sobre a passeata na busca virtual, acabei chegando a um artigo impecável, o de André de Oliveira, repórter do jornal El País. A ele, pois!
MAIO DE 1968 NÃO FOI UM MÊS
NO BRASIL, MAS UM ANO INTEIRO
Por André de Oliveira |
Maio de 1968 foi diferente para os estudantes brasileiros. A começar pelo fato de não ter sido um mês, mas um ano intenso de muito mais perdas do que ganhos.
Lá fora, a panela de pressão misturava movimentos de contracultura, palavras de ordem anti-sistema, reivindicações de cunho identitário e protestos contra a Guerra do Vietnã; aqui, o inimigo era mais palpável: a ditadura militar.
“Por isso, a nossa geração de 68 foi a que mais caro pagou por sua rebeldia, através de prisões, tortura, exílio e até morte”, escreve Zuenir Ventura em seu clássico 1968 — o ano que não terminou. Se durante o ano houve dezenas de mobilizações estudantis, tudo acabou em 13 de dezembro, com o Ato Institucional nº 5, que inaugurou o período de maior repressão da ditadura.
Uma foto dessas mobilizações é conhecidíssima. Dois militares, cassetetes na mão, perseguem de perto um homem que, caindo, joelhos dobrados, óculos voando alguns centímetros à frente, um pé já tocando o chão e braços abertos em cruz, está prestes a se esborrachar.
Um policial, o da esquerda, corre com os lábios presos, talvez, pronto para desferir uma cacetada. O outro, com uma das mãos espalmada, parece querer agarrar pela camisa o homem barbudo, que dificilmente conseguirá escapar das pancadas que certamente levará.
Ao longe, no meio da rua, um careca vara pau observa a cena calmamente. Mais para trás, vê-se um aglomerado difuso de gente, que sugere corre-corre.
A imagem de Evandro Teixeira, no centro do Rio de Janeiro, é de 21 de junho, a data que ficou conhecida como a sexta-feira sangrenta, um dos pontos culminantes daquele 1968. Contudo, para se chegar a esse dia, quando os estudantes, com participação espontânea de um bom número de civis, travaram uma batalha de horas contra os militares no centro carioca – deixando um saldo, em uma das versões, de ao menos cinco pessoas mortas, entre estudantes e policia – é preciso falar de acontecimentos anteriores (e também posteriores) que sumarizam todo o ano de mobilizações estudantis.
Um ponto de partida possível é Edson Luís. Secundarista, Edson Luís foi morto em 28 de março, aos 18 anos, durante a invasão militar do restaurante estudantil Calabouço – que era alvo de reivindicações pois teve o preço das refeições aumentado.
A morte do estudante, que sequer participava de algum movimento organizado e estava no local porque, filho de uma família pobre do Pará, vivia ali de favor para poder cursar o 2º grau na capital carioca, gerou grande indignação.
No documentário Memória do Movimento Estudantil, o então presidente da União Nacional dos Estudantes, Jean Marc Van Der Weid, lembra que o assassinato de Edson Luís foi o gatilho para uma série de eventos que atraiu, inclusive, a simpatia de setores da classe média que, até então, mantinham-se alheios à repressão da ditadura.
À pauta do movimento estudantil, que pedia mais verbas para a educação, além de travar uma luta pelos excedentes –quem havia passado no vestibular, mas não encontrava vaga na Universidade– somava-se à denúncia contra a violência militar sob as palavras: “E se fosse um filho seu?”.
Um dia depois da morte do secundarista, o cortejo de seu enterro reuniu 50 mil pessoas, que caminharam da Assembleia Legislativa, no centro do Rio de Janeiro, até o cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, zona sul.
Houve, entre estudantes e figuras conhecidas, quem passasse a noite inteira velando o corpo do secundarista, como fez o intelectual Otto Maria Carpeaux, que na época não era nenhum menino, tinha 68 anos.
A missa de sétimo dia de Edson Luís foi outro acontecimento. Centenas de pessoas foram à Igreja da Candelária prestar homenagens e se despedir, mas na saída acabaram reprimidas pelos militares. Depois disso, vieram os ventos franceses de Maio de 1968. (continua neste post)
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