domingo, 18 de março de 2018

CARTA ABERTA À VEREADORA MARIELLE FRANCO

Querida Marielle,  

tenho, pessoalmente, identificação com você em alguns aspectos. E, como um irmão jovem há mais tempo, acho que posso tecer comentários no sentido de uma correção de rumos da nossa ação prática embasada na teoria, que considero fundamental para nossos acertos na condução da nossa luta pela emancipação humana, que não tenho dúvidas é nosso propósito comum (uso os verbos no presente porque você está presente).

Temos três similaridades bem definidas: 
a) somos conterrâneos, nascidos no Rio de Janeiro, embora com condições sociais diferenciadas, mais difíceis para a criança que você foi, o que só enaltece a grandeza e sentido de sua existência que permanece entre nós; 

b) somos ligados à luta pelos direitos humanos. Como advogado, fui um dos fundadores do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, sob os auspícios de D. Aloísio Cardeal Lorscheider, ainda no início de 1980, enquanto você não apenas é uma militante nessa área como parte integrante da luta contra a discriminação contra a mulher, principalmente quando negra e vivendo numa área de segregação social capitalista (a favela);

c) eu fui um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores nos idos de 1981 em Fortaleza, tendo sido expulso do Partido quando uma corrente me indicou como possível candidato a prefeito na sucessão da Maria Luíza Fontenele em 1988. Era o secretário de Finanças da Administração Popular e, como eu e ela não conciliamos com os donos do PIB e nem aceitamos a corrupção como forma de financiamento de campanhas eleitorais (e outros objetivos inconfessáveis), fomos honrosamente expulsos. 

Com a experiência e exemplos históricos deixei de acreditar nos partidos políticos, institucionais ou não, como instrumento de emancipação popular. Você está há algum tempo tentando viabilizar eleitoralmente o Psol e ainda não teve oportunidade de aprender o que é, na prática e sem interesse de enriquecimento ilícito, o quão equivocada é a postura de administrarmos o aparelho de Estado capitalista ou participarmos de sua institucionalidade parlamentar. 

Essa nossa última identificação deixou de existir quando compreendi que os partidos políticos fazem parte do sistema, principalmente os institucionais.       

Mesmo sem conhecer os detalhes sórdidos do atentado do qual você foi vítima, não tenho dúvidas de que se deveu à sua atuação em defesa dos direitos humanos numa cidade assolada pela corrupção (do colarinho branco ao colarinho sujo) que inflige tormentos terríveis ao alegre, cordato e honesto povo carioca.

Sua execução não se deve, principalmente, à sua atuação parlamentar, mas sim à supra-parlamentar. É que a defesa dos direitos fundamentais da pessoas humana incomoda tanto o crime socialmente descriminalizado do capital (o roubo do tempo de trabalho do trabalhador, fonte de toda a sua abjeta acumulação) quanto o crime oficialmente criminalizado (a corrupção com o dinheiro público e muitas outras formas criminosas tipificadas no Código Penal).
Você é como tantas outras pessoas que ainda acreditam na importância da atividade parlamentar, daí ocupar uma cadeira na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 

E, certamente, você acredita no seu partido político, o Psol, que aspira conquistar o poder do aparelho de Estado burguês, como aconteceu nas últimas eleições presidenciais na qual lançou o correto e bem intencionado Plínio de Arruda Sampaio (de quem guardo gratas lembranças desde o tempo do PT, quando foi um deputado federal que apoiou minha candidatura a prefeito de Fortaleza, promovendo um almoço para este fim na sua residência de Brasília, com a presença do Lula – que a rejeitou – e na qual me deliciei com um delicioso peixe à moda ceviche preparado por sua esposa peruana).  

Deixei de acreditar nos partidos e nas suas estruturas verticalizadas de poder por ter sentido na carne o que isto significa; e deixei de acreditar na falácia do centralismo democrático porque os partidos, ávidos de poder, apenas reproduzem o que dizem combater. 

Hoje eu sou, visceralmente e racionalmente anti-poder; não acredito em poder popular, mas em exercício horizontalizado e distribuído de tarefas sociais sob um modo de produção que elimine a acumulação da riqueza.

Mas é justamente aí, sobre a sua atividade política parlamentar e do seu partido que aspira a ter assento na administração do aparelho de estado burguês, que desejo me debruçar, tecendo algumas considerações a respeito do significativo sentido de sua vida, que tomou uma expressão nacional e, por isto mesmo, não deve servir de plataforma eleitoral oportunista.

Querida Marielle, 

são muitos os que aproveitam a indignação popular contra o seu atentado para afirmar (até de modo bem intencionado, inconsciente, ingênuo ou, o que é pior, de forma oportunista e mal intencionada) a importância de mantermos nossas lutas políticas dentro dos limites dos valores republicanos, na presunção de que se possa assim humanizar o sistema capitalista e toda a sua entourage institucional. 
Tenho, pessoalmente, uma visão muito crítica de tal postura. Ainda que reconheça a importância dos recursos da verba parlamentar como financiamento de muitas lutas paralelas (como a defesa da mulher negra, que você leva a cabo), bem como a importância da caixa de ressonância dos discursos parlamentares, insisto em afirmar há um malefício aí embutido muito maior do que os possíveis benefícios, daí a tal da democracia burguesa e o seu famigerado estado democrático de direito tolerarem e até desejarem a presença de gente combativa como você no parlamento. 

É que, com a presença de dignos representantes do povo como você, a farsa da democracia burguesa legitima os parlamentares eleitos tanto com os mais variados incentivos do poder econômico quanto com recursos de origem criminosa, afora a manipulação das consciências populares. Alega-se cinicamente que foi o povo quem escolheu a uns e outros; e que tal forma de escolha seria legítima e a melhor possível. Não é. 

O parlamento burguês municipal do qual você faz parte não passa da primeira instância da esfera do Poder Legislativo da sociedade do capital. É onde se legitimam as leis municipais de opressão sistêmica, sempre patrocinadas pela maioria parlamentar dos inimigos do povo. 

Tais práticas estendem-se com maior grau de potencialidade opressora para os parlamentos estaduais (caso do Rio de Janeiro, onde o seu presidente Jorge Picciani está preso por corrupção) e os presidentes da Câmara Federal (igualmente presos por corrupção estão Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves). 

Mais nociva ainda nosso povo tão necessitado da verdadeira emancipação é a briga de foice no escuro para assunção ao poder executivo dos aparelhos estatais estaduais e federal.

A disposição de bem administrar o aparelho de estado burguês, atuando de forma pró-povo, não passa de um equívoco colossal. Sou obrigado a lhe dizer, em nome da teoria revolucionária e da experiência pessoal adquirida na administração pública, que essa é uma quimera que nos tem colocado no eterno dilema do mito de Sísifo (personagem da mitologia grega que estava condenado a repetir eternamente o mesmo esforço sem nunca alcançar o objetivo).

Uma vez investidos no poder burguês (parlamentar ou executivo), a primeira coisa que fazemos é jurar obediência à Constituição burguesa na qual estão insculpidos todos os artefatos da dominação de classe. Não é por menos que o presidente Temerário, a imprensa burguesa e todos os áulicos do sistema capitalista afirmaram que o atentado à sua pessoa foi também um atentado à democracia e ao estado de direito.      
Devemos ter muito cuidado com essas carpideiras de última hora, pois a democracia burguesa e o estado de direito burguês são antagônicos ao povo oprimido, justamente por tais instituições cumprirem o papel de coadjuvantes políticas da opressão.

O capital em fase de decomposição, base das mazelas sociais contra as quais você tanto se rebela, é que deve ser o foco do nosso ataque, diretamente, sem comprometimentos; aspirando à assunção aos postos burgueses do aparelho de estado que existem para lhe dar sustentação estamos apenas fazendo o jogo do inimigo. 

A participação nesses aparelhos políticos jurídico-institucionais nada mais é do que uma contradição entre o nosso objetivo teleológico e a nossa prática concreta, embora muitas vezes não nos apercebamos disto.

Uma vez assentados na gerência política estatal somos obrigados a tomar medidas anti-povo por obediência à ditatorial lógica da boa administração econômica ou, ainda, às leis de responsabilidade fiscal que determinam onde e sob quais critérios quantitativos se pode gastar as verbas públicas advindas dos escorchantes impostos pagos pelo povo. Tornamo-nos, ainda que não o queiramos, odiosos coletores de tributos, incapazes do provimentos das demandas sociais.

Não basta uma revolução política. Faz-se necessária uma revolução no conteúdo da forma de mediação social, ou seja, uma superação do modo de produção social e suas categorias capitalistas (valor, trabalho abstrato, dinheiro, mercadoria, mercado, etc.).     
           
 Marielle, 

você é realmente gigante e é imortal na sua digna luta contra o racismo, a misoginia, a homofobia e outras mazelas. 

Temos, contudo, de evitar que o seu exemplo seja utilizado para viabilizar mudanças cosméticas que não alterem a essência da opressão.

Aqui se torna necessária uma observação histórica: os países que fizeram uma revolução política dita anticapitalista, sem, contudo, superarem as categorias capitalistas no interior de suas sociedades, permaneceram capitalistas na sua essência, ainda que tenham havido modificações na superestrutura política do poder. 

Terminaram aderindo, por imposição fetichista, àquilo que não superaram: as mesmas categorias capitalistas de outrora, que continuaram a lhes servir como modo de mediação social. 

Sob pena de continuarmos patinando na mesmice, temos de levar em conta exemplos históricos como a da abolição da escravidão direta dos negros no Brasil, que só serviu para entronizar outra forma de dominação. 

Ela se deveu ao imperativo da necessidade de trabalho abstrato por parte do capital emergente, daí ter dado lugar à escravidão indireta do trabalho abstrato, que segregou as populações negras nos morros cariocas (lugares de mais difícil acessibilidade de então), obrigando-as, sob tacão policial, ao trabalho assalariado, sob pena de cometimento do crime de vadiagem, com negros sendo presos e taxados como capadócios

Após a dita abolição da escravatura, quem fosse pego com calo nos dedos era tido como sambista vagabundo, considerado criminoso e preso.

Assim, faz-se necessário abolir o trabalho abstrato como forma de se pôr fim à segregação social do capital que deu azo à exclusão racista, pois não há como se humanizar o capital e a sanha segregacionista da sua lógica funcional.   

Perdoe-me se também aproveito o atentado contra você para escrever esse texto que deve servir de contraponto ao oportunismo vulgar de uns, e que não reflete, obviamente, o vulto da honesta indignação popular diante do acontecido e do que você representa.

Pelo que fizeram com você lacrimejo de modo doído, mas me esforço para que o seu exemplo seja libertador, emancipacionista.
É com tal intento que me coloco dialeticamente na avaliação de conteúdo do antes, do durante e do depois da tragédia social de que somos todos vítimas, com alguma discórdia específica diante do seu digno exemplo que é abrangente como o sol que a todos ilumina.

Não sinto saudade de quem está presente pelo conteúdo do seu significado, mas sinto a falta da presença física nas lutas de quem sequer cheguei a conhecer.

Receba o abraço fraterno de quem se sente igualmente atingido pelas balas assassinas que covardemente lhe foram desferidas. 

Dalton Rosado 

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