sábado, 13 de janeiro de 2018

CONY NÃO FOI INSULTADO PELA VIDA, MAS PELAS ESCOLHAS QUE FEZ AO LONGO DELA.

Toque do editor
Um bom amigo me avisou que o artigo de Mário Sérgio Conti sobre Carlos Heitor Cony, publicado na Folha de S. Paulo de hoje (13/01), tem muitos pontos de contato com o meu de sábado passado (vide aqui). Fui checar e ele estava certo.

Como dificilmente terei motivo para postar algo sobre o Cony doravante, resolvi trazer para o blog o texto do Conti; apesar dos pesares, o finado travou o bom combate durante tempos difíceis, fazendo por merecer o espaço que, bem ou mal, estou lhe concedendo. Pena que não tenha mantido tal atitude pelo resto da vida.

Foi, também, uma grata surpresa para mim encontrar outro articulista capaz de falar de mortos célebres sem papas na língua. Geralmente sou apenas eu que desafino o coro dos contentes...

Por fim, comparar o escritor ao personagem principal do seu livro de 1967 foi uma boa sacada do Conti, tem realmente muito a ver. Mas preferi não ir por este caminho, pois me incomodou a forma caricata e até repulsiva com que Cony retratou seus guerrilheiros. 

Pareceu-me que ele estava muito à vontade na própria praia, dissecando a vidinha estagnada do seu alter ego, mas desconhecia completamente o universo da luta armada. 

UM HERÓI CÍNICO E HIPÓCRITA
Por Mário Sérgio Conti
O herói de Pessach: a travessia, o romance de Carlos Heitor Cony de 1967, é um narrador astuto. Reptiliano, Paulo Simões avisa logo de cara: "Os outros têm razão: sou um hipócrita ou um cínico, talvez as duas coisas juntas".

Na frase seguinte, porém, insinua que os outros se enganam: "Só a mim mesmo essa cara não tapeia. Também, olho-me pouco no espelho, o necessário para a barba: não gosto de estranhos". Superior à sociedade, Simões desdenha de sua aparência cínica e hipócrita.

O próprio narrador pode estar errado, contudo: só se olha no espelho para fazer a barba, e vê um estranho. Em ordem unida, suas frases rufam como tambores de parada. O ratimbum do ego onisciente soa unívoco e evidente, mas, visto de perto, é dúbio, furtivo, furta-cor.

Pessach, a Páscoa judaica, celebra a libertação do povo eleito do cativeiro e a travessia do Mar Morto. Como título, é uma metáfora forçada: Simões não é judeu e o povo inexiste. Sua travessia é pessoal. Ele supera a hipocrisia e o cinismo e se acha ao empunhar um fuzil contra a ditadura.

Foi uma travessia típica. Em 1967 saíram também Terra em Transe, de Glauber Rocha, que termina com Paulo Martins de submetralhadora em riste, e Quarup, de Antonio Callado, no qual padre Fernando adere à guerrilha. O filme é genial; o romance, um cálido documento de época.

Pessach se esbalda em sensacionalismo sádico. Um guerrilheiro, cujo pênis fora carbonizado na tortura com um maçarico, açoita um subordinado negro (abrutalhado e bêbado, portanto) e faz com que estupre uma virgem. Os personagens falam mais de bidês que de luta de classes.

O romance serve de alegoria para a intelectualidade –premida que estava entre a traição do PCB, a cartada suicida da luta armada, a inócua assinatura de manifestos, o desbunde ou a melancolia estéril. Simões nem cogita em aderir à nova ordem.

Pessach serve, ainda, para pensar os laços entre Cony e Simões. No lançamento do livro, sua primeira frase era: "Hoje faço quarenta anos". Não houve mudança na reedição, de 1975.

Em 1997, na terceira edição, ela foi alterada para: "Hoje, 14 de março de 1966, faço quarenta anos". Cony nasceu em 14 de março. Em 1966, fez quarenta anos. Ou seja, Simões é seu alter ego.

É equivocado identificar o autor, pessoa real, com o narrador do romance, personagem fictício. Em Pessach, tal identificação foi buscada ao longo dos anos. A mudança foi política. Nas primeiras edições, a ditadura dominava. Em 1997, Fernando Henrique cumpria o seu primeiro mandado presidencial.

A identificação Simões-Cony não faz com que Pessach deixe de ser ficção. Mas dá um sentido subjetivo à seguinte afirmação do narrador-autor: "Não quero morrer de velhice ou de moléstia... Antes que a vida me insulte, insultarei a vida: me engajo numa luta... Talvez consiga ser herói".
Dose de elefante: entrevistar isso aí.

Cony era um herói de verdade. Cronista alheio à política, a partir de abril de 1964 passou a vergastar com altivez a violência militar. Foi mais lúcido e corajoso que Simões. Fez isso sozinho e pagou caro: demissão, afastamento do Brasil, uma dúzia de processos.

Cerca de dois anos depois de Pessach, desistiu de ser herói. Virou o alter ego de Adolpho Bloch, que o contratou para exaltar o regime. E, meses após relançar o romance, não teve pejo em entrevistar na Manchete Sérgio Fleury, ponta de lança dos torturadores. Era chamado de Conyvente.

Com Lula no Planalto, o herói fantasmagórico abocanhou uma bolsa-ditadura. Cony pediu indenização e quis uma pensão mensal. Em valores de hoje, a indenização foi de R$ 2,8 milhões; a pensão, de R$ 37,6 mil.

O herói morreu de velhice e moléstia. Não foi insultado pela vida, mas pelas escolhas que fez ao longo dela. Seus artigos de 1964 são um cálido documento de época. Pessach, uma ruína sobre hipocrisia e cinismo.

5 comentários:

Sérgio Lamarca disse...

Um canalha e está registrado, baba ovo de torturador. Não venham com papo furado que lutou contra a ditadura, pois foi um boa vida. Um canalha em vida que foi tarde. Que no inferno faça outra entrevista com o Fleury.

Sérgio Lamarca disse...

Que vá fazer outra entrevista com o Fleury, junto, no inferno.

Anônimo disse...

Celso, um texto esclarecedor.

Unknown disse...

se erros cometeu, isso não dá a ninguém o direito de ofende-lo, por que não o fez enquanto ele estava aqui para poder defender-se.????...... covardia, foi um ser voluntarioso, jamais esquivou-se em falar e escrever o que realmente pensava e em que acreditava, snr Adolfo o contratou porque queria que o ex-presidente JK (o mais democrata que este país já teve), o acompanhasse
e se tornasse seu amigo, confidente, companheiro das insonias e também ficasse a frente da direção da revista Manchete. Não é admissível atacar um ser que não está mais presente.... ele foi um amigo sincero e leal ao JK e ao snr. Adolfo Bloch, quando não se conhece realmente uma pessoa, não se deve julgá-la após a sua "partida". A família CONY é séria e Carlos Heitor entrou para a Academia Brasileira de Letras por mérito e competencia!!!!!!!!

celsolungaretti disse...

O artigo que publiquei é do Mário Sérgio Conti e eu não tenho a mínima ideia sobre o que ele tenha escrito a respeito do Cony enquanto o Cony "estava aqui para defender-se".

Só sei que eu mesmo escrevi muita coisa, como este artigo de 2008:
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2009/08/o-ato-cony-sepultou-os-ideais-o-fato.html

Cheguei a gostar muito da obra dele, até "Pilatos", que considero seu último grande livro.

Mas, fiquei horrorizado quando ele furou a fila dos julgamentos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e foi privilegiadíssimo na decisão que o colegiado tomou. Disse, então, que o tinham passado na frente dos pobre de verdade e lhe oferecido um banquete ao invés da sopa dos pobres que todos os outros receberiam.

Isto em 2005, bem antes de sua morte. Quando morreu, não escrevi nada que não houvesse escrito antes.

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