O desprezo (1963) é um dos grandes filmes da fase áurea de Jean-Luc Godard, que transpôs para as telas uma história de outro talento superlativo das artes, o escritor Alberto Moravia.
Finalmente disponibilizado no Youtube, permitindo-me acrescentá-lo aos filmes para ver no blogue, mostra um casal perfeito se desconstruindo aos poucos por força do caráter imperfeito do marido, que não só trai suas convicções pessoais, como também decepciona terrivelmente a mulher por querer aproveitar de qualquer maneira uma grande oportunidade profissional.
"O filme foca a trajetória de um roteirista, Paul Javal (Michel Piccoli), casado com uma ex-datilógrafa, Camille (Brigitte Bardot) e responsável por alguns scripts de sucesso. Tudo começa na Cinecittá italiana, a partir do momento em que Paul recebe o pedido do produtor Jerry Prokosch (Jack Palance, deliciosamente caricatural) para ajudar, em caráter de emergência, a reescrever o roteiro de um filme.
Godard e BB durante as filmagens |
Um legítimo executivo de Hollywood, o norte-americano Jerry anda descontente com o uso que o diretor austríaco Fritz Lang (a lenda em pessoa, numa interpretação iluminada, de tom professoral) faz de seu orçamento, na conversão às telas da Odisseia, de Homero.
Lang defende que a epopeia grega deva obedecer ao texto original de 3 mil anos atrás, mas Jerry considera o resultado, estacionado no meio das filmagens, absolutamente imprestável.
Longe de ousar desrespeitar a obra do mestre Lang, Paul aceita o serviço por dinheiro, uma vez que o casal ainda paga as prestações de seu novo apartamento. O roteirista só não contava com os galanteios de Jerry para cima de Camille, o estopim do verdadeiro conflito da película".
Minhas lembranças do filme vão além da arte cinematográfica, pois incluem acontecimentos inusitados na minha trajetória de militante revolucionário.
Depois de ter sido um dos sete participantes do racha ocorrido no congresso da VAR-Palmares de outubro de 1969, voltei de Teresópolis com a incumbência de expor aos militantes de São Paulo os motivos de havermos decidido recriar a VPR, em reuniões nas quais a posição contrária era apresentada por Antonio Roberto Espinosa.
Devanir: metalúrgico do ABC que se tornaria um dos guerrilheiros mais caçados pela repressão. |
Como eu era muito procurado pela Oban e a VPR ainda estava se reconstituindo, sem aparelho para me abrigar, ficou combinado que utilizaria a rede da VAR. A solidariedade revolucionária, em tese, prevalecia sobre as disputas entre nós mesmos.
Depois de duas dessas reuniões, contudo, o companheiro da VAR que tinha a incumbência de me recolher em algum local da cidade simplesmente me abandonou: não compareceu ao ponto nem à alternativa (fixada, se bem me lembro, para uma hora depois).
Como eu era levado e retirado do aparelho olhando disciplinadamente para o chão do carro, não tinha a mínima condição de o localizar. Meu único documento era um título de eleitor com nome falso, facílimo de falsificar. Os hotéis estavam muito vigiados.
De quebra, meu ponto seguinte com a VPR estava marcado para alguns dias à frente e não previmos uma opção para emergências. Fiquei num mato sem cachorro.
De quebra, meu ponto seguinte com a VPR estava marcado para alguns dias à frente e não previmos uma opção para emergências. Fiquei num mato sem cachorro.
Caminhando a esmo pelo centro de São Paulo, por uma incrível coincidência dei de cara com o Devanir José de Carvalho, que já conhecia de outra ocasião. Excelente companheiro, ele imediatamente me ofereceu guarida num aparelho do seu MRT.
À noite, contudo, o grupo saiu para realizar uma ação armada (ofereci-me para ir junto, mas o Devanir respondeu que não saberia como explicar à VPR se algo de mau acontecesse comigo) e despertou suspeita no trajeto, acabando por serem trocados tiros com uma viatura policial.
O tiroteio se dera relativamente perto do aparelho, então ele teve de ser abandonado às pressas. Separamo-nos. Vi-me de manhãzinha no centro da cidade, tendo de esperar o dia inteiro para me encontrar, às 20h30, com alguém da VPR, pois o bom Devanir conseguira acertar um ponto mais rápido para mim.
Peguei ônibus para cá e para lá, demorei uma eternidade almoçando e, às 14 horas, resolvi fazer hora no cine Coral (era na rua 7 de abril, ao lado da praça da República), que exibia, exatamente, O desprezo.
Peguei ônibus para cá e para lá, demorei uma eternidade almoçando e, às 14 horas, resolvi fazer hora no cine Coral (era na rua 7 de abril, ao lado da praça da República), que exibia, exatamente, O desprezo.
Como mal dormira à noite, devo ter pegado no sono uns dez minutos depois de as luzes se apagarem. Acordei quando elas se acenderam no final da sessão, sobressaltado com a possibilidade de o revólver que eu carregava sob o braço haver ficado à mostra. Não ficara.
Naquele tempo o ingresso me dava direito a quantas sessões eu quisesse, então permaneci na das 16h e na das 18h, sempre da mesma maneira: via o comecinho do filme e apagava logo depois da sequência em que la Bardot exibia pela primeira vez seu belo bumbum para o distinto público.
Só assistiria pra valer a O desprezo muito tempo depois.
Só assistiria pra valer a O desprezo muito tempo depois.
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