Já o evocara sete anos atrás na Folha Ilustrada mas, nesta época do ano em que nada de mais importante costuma ocorrer, somos mesmo obrigados a remexer o baú em busca de uma reminiscência aproveitável para bisar.
Vou pegar carona, reproduzindo não só a lembrança do Cony, mas também uma minha, de preso político que não era intelectual nem famoso, mas também topei com militares de bom coração durante minha temporada no inferno.
Comecemos pelo Cony e seu Natal na PE da Vila Militar, que ainda era um quartel normal (só um ano mais tarde iria se transformar na sede do DOI-Codi):
"...o comandante cujo nome não guardei, homem civilizado e gentil, surpreendeu a mim e ao Joel [Silveira] mandando vir, de sua casa, uma ceia completa, vinho, castanhas, fatias de peru, frutas, um cartão amável desejando não somente um feliz Natal mas uma rápida libertação".
"...ficamos conhecendo o outro lado daquela turma que nos prendia. Nem Joel nem eu fomos torturados, mas passávamos a noite ouvindo os gritos dos torturados.
Na hora das refeições, antes de chegar a comida, chegavam dois tipos de homens diferentes, verdadeiros armários que apontavam as armas enquanto comíamos não a comida normal dos quartéis, mas uma pasta que parecia os restos de outras refeições.Nenhum diálogo, apenas ameaças. Nem banho de sol, obrigatório pela Convenção de Genebra. Nem visitas, nenhum contato com o mundo exterior, nem mesmo com a família, que não sabia onde estávamos e se estávamos vivos".
Terrorismo de estado atingiu auge com Médici |
As minhas próprias recordações me levam a considerar um tanto mecânica a análise de Cony.
Sequestrado (aquilo lá nem de longe respeitava os trâmites legais de uma detenção) em abril/1970, eu só deveria ter conhecido monstros. Mas, restavam alguns médicos.
E não só os bons recrutas que, compadecidos de nossa situação, arriscavam-se a severas punições para nos prestarem pequenos favores e até davam um jeito de aumentar a quantidade de comida no bandejão que nos serviam, por perceberem que estávamos desnutridos.
Mesmo entre oficiais encontrávamos um pouco de solidariedade; com maior frequência quando se tratava de veteranos que tinham aprendido seu ofício em tempos menos bicudos. Para estes, honra militar não era uma expressão em desuso.
Este acidente despertou suspeitas à época |
Quando foi relaxada a primeira das três prisões preventivas que me mantinham prisioneiro, transferiram-me do quartel da PE da Vila Militar, um dos piores que existiam, para o que, por contraste, pareceu-me um hotel: o Regimento Escola de Cavalaria.
TEMPO DE OGROS
Como companheiro de quarto – não era exatamente uma cela, embora tivesse grades na janela –, um professor que não havia participado da luta armada mas, mesmo assim, levara choques elétricos tão terríveis na PE da Vila Militar que tinha os ossos dos dedos da mão expostos.
Deduzi que ambos sairíamos em breve. Os militares se preocupavam com tais detalhes, como o de não despejar nas ruas pessoas que parecessem ter saído de um campo de concentração nazista. Representariam a prova viva do que sucedia nos porões. Então, costumavam recuperar um pouco os presos, fisica e psicologicamente, às vésperas da libertação.
Como única ressalva, eu admitia que os oficiais se direcionassem para a Cavalaria exatamente por terem um perfil mais afável (tanto que gostavam de animais), ao passo que iam para a infantaria os naturalmente insensíveis; e os piores deles, para a Polícia do Exército. Então, nos três casos, a escolha da unidade levava em conta o physique du rôle.
Mas, houve um oficial que me pareceu ir além do script: o comandante do regimento, coronel Sebastião José Ramos de Castro, sintomaticamente um veterano da Força Expedicionária Brasileira que foi à Europa lutar contra o nazi-fascismo.
Em dezembro/1969, as visitas dos parentes de presos políticos estavam todas suspensas na Vila Militar do RJ, em função do sequestro do embaixador suíço. O cel. Castro abriu-nos uma exceção no Natal. Meus pais ficaram comovidos, pois a festa estaria estragada para eles se não vissem o filho único.
Fiquei com a impressão de ter sido uma decisão pessoal, não uma encenação a mais. O jeitão, a forma de falar, o tratamento respeitoso adotado com seus subalternos, tudo naquele oficial compunha a imagem de homem digno, capaz de uma atitude dessas.
Fiquei com a impressão de ter sido uma decisão pessoal, não uma encenação a mais. O jeitão, a forma de falar, o tratamento respeitoso adotado com seus subalternos, tudo naquele oficial compunha a imagem de homem digno, capaz de uma atitude dessas.
Voltando ao dr. Jeckyll e Mr. Hide, faz sentido supor que, mesmo no pior momento do terrorismo de estado, as Forças Armadas continuassem tendo seus médicos, além dos monstros (que davam muito mais na vista).
E, principalmente, indivíduos comuns, que não eram uma coisa nem outra, mas perceberam que, naquele momento, seus interesses estariam melhor servidos se deixassem aflorar as componentes monstruosas de sua personalidade, pois era isto que deles se esperava.
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