sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

UM EPISÓDIO DE CRUELDADE EXTREMA: O DEL. FLEURY JUROU TORTURAR DEVANIR DE CAVALHO ATÉ A MORTE... E CUMPRIU!

Como a família de Lula, também a de Devanir José de Carvalho veio de muito longe para tentar melhor sorte no ABC paulista. O ofício que ele lá aprendeu foi o mesmo: o de torneiro-mecânico. E outra opção de ambos acabou sendo idêntica, a de trocarem a carreira confortável que tinham ao alcance pela árdua defesa dos explorados. 

As semelhanças terminam por aí. Enquanto o destino de Lula foi a Presidência da República, para Devanir estava reservado um terrível martírio. Que ele enfrentou com convicção e coragem.

Para contar um pouco da história desse valoroso companheiro,  vou entremear três relatos:
—  o de minha autoria, no livro Náufrago da Utopia;
— o da Comissão Nacional da Verdade, no seu relatório final (o verbete a ele dedicado está na página 576 do volume 3); e
— o do Centro de Documentación de los Movimentos Armados, intitulado Um exemplo de resistência.
*  *  * 
"Mineiro, nascido no dia 15 de julho de 1943, na cidade de Muriaé, Devanir era filho de José Carvalho e Esther Campos de Carvalho... 
Na década de 1950, sua família, de origem camponesa, mudou-se para São Paulo, para a região do ABCD. Era a época do início da instalação das indústrias metalúrgicas e automobilísticas na região.

Juntamente com seus irmãos Derli, Daniel e Joel, com quem aprendeu o ofício de torneiro mecânico desde a adolescência, trabalhou nas indústrias da região — Villares e Toyota, entre outras. Em 1963, casou-se com Pedrina, com quem teve dois filhos...

Em 1963, logo que se empregou, uniu-se ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, militou por reformas de base e participou de greves, passeatas operárias e outras formas de mobilização. Nesse mesmo ano ingressou no Partido Comunista do Brasil, no qual militou até 1964.

Depois do golpe militar, mudou-se para o Rio de Janeiro, devido às perseguições, e lá continuou sua militância na clandestinidade, trabalhando como motorista de táxi.

Em 1967, Devanir uniu-se à Ala Vermelha, dissidência do PCdoB... (que) partiu para a ação e foi o primeiro grupo a realizar ações armadas no Brasil, durante a ditadura militar, já no ano de 1968. Essas ações eram dirigidas pelo Grupo Especial Nacional (GEN), do qual participava Devanir Carvalho.

[Quando a Ala Vermelha decidiu mudar sua linha política, abandonando as ações armadas] O GEN não aceitou a reorientação e, saindo da Ala, criou o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT)...

Pequeno, mas combativo e eficiente, já em dezembro de 1969, o MRT realizou ações armadas em conjunto com outros grupos guerrilheiros com os quais formou uma Frente (ALN, VPR e Rede)." (Um exemplo de resistência)

*  *  *

Em agosto de 1969, eu (Júlio) estava à frente do setor de Inteligência da Vanguarda Popular Revolucionária em SP e o José Raimundo da Costa (Moisés), meu companheiro no Comando Estadual — responsável por contatos com outras organizações e pela assistência a grupos menores, inclusive do Interior , passou-me uma  batata quente, conforme descrevi no meu livro:
"É tempo de situações complicadas para Júlio. Obrigado a uma viagem de última hora,  Moisés  lhe pede que cubra em seu lugar um ponto dos mais delicados: deve encontrar-se com Devanir José de Carvalho (Henrique), que acaba de escapar à bala de um cerco policial. O fato foi noticiado com algum destaque pela imprensa.
Devanir (8º da esq. p/ a dir., na fileira de baixo) e outros militantes assassinados pela ditadura militar
Combatente com mais de um ano de participação ininterrupta em ações armadas, Devanir é da mesma estirpe do  Bacuri: arrojado até a insensatez, tem uma trajetória marcada por sangue e mortes. Foi expulso pela direção da Ala Vermelha do PCdoB em meio a recriminações mútuas. Tem agora seu próprio grupelho e mantém relação de cooperação com a VAR.
— Um homem desses, que teve quatro irmãos presos pela repressão e conseguiu fugir mesmo depois de baleado, deve estar com os nervos à flor da pele — comenta Júlio.

Moisés  lhe recomenda que se aproxime com cuidado, evitando gestos bruscos.
Minha aparência inofensiva tranquilizou Devanir
O encontro é numa manhã ensolarada de sábado, na rua Pamplona, proximidades da Avenida Paulista. Felizmente, tudo está tranquilo. É uma região nobre da capital paulista e não há movimentações suspeitas que possam assustar Devanir.
Ele chega cauteloso, com o braço na tipoia. Olha interrogativamente para  Júlio, que está do outro lado da rua. Júlio  abre um sorriso efusivo e atravessa, mantendo as mãos afastadas do corpo. Vai direto ao assunto:

— Companheiro, o Moisés viajou e eu vim no lugar dele. Vamos tomar um café?

Talvez por Júlio ter aparência inofensiva, Devanir não mostra nenhuma desconfiança. Acabam se dando bem.  Júlio  transmite o recado de  Moisés, marca o novo encontro e depois ficam meia hora jogando conversa fora. Devanir satisfaz a curiosidade de  Júlio  sobre o tiroteio: 
— Nem sei como escapei, era tanta bala passando perto..."(Náufrago da Utopia)
O Moisés também foi executado
 *  *  *

Meu encontro seguinte com Devanir foi casual... e providencial.

Consumado o racha no Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares, em outubro/1969, eu fui incumbido de expor aos militantes paulistas a posição dos que estávamos recriando a Vanguarda Popular Revolucionária, ao passo que o Antonio Roberto Espinosa apresentava as razões dos que preferiram continuar na VAR.

Acontece que a VPR, de imediato, não tinha  aparelho  nenhum em SP. Então, cabia à VAR me dar abrigo, provisoriamente. O que ela fez apenas pela metade:
"Júlio  estava provisoriamente instalado no aparelho de um companheiro residente na periferia. Era transportado de carro, sem olhar o percurso. De repente, num final de tarde,  furam  o  ponto  em que deveria ser apanhado. Depois, também o  ponto  alternativo. Ele compreende que foi abandonado.

O que fazer? Há boatos de que a repressão aprimorou o controle dos hotéis, mais vale não arriscar. Então, sem opção melhor, ele acaba voltando à velha Mooca — bairro que está evitando desde que saiu de casa, porque lá é conhecido demais.

Consegue guarida na casa de um ex-colega do [Colégio] MMDC, espírita convicto, que nunca concordou com as atividades revolucionárias. Numa emergência, ele socorre Júlio — mas, na manhã seguinte, logo cedinho, pede-lhe que vá embora, pois tem um irmão que é policial-militar e também mora lá. A presença de Júlio poderá causar-lhe sérios problemas.
Esta ação da VPR teve importante contribuição de Devanir e seu MRT
 Volta para o centro da cidade e fica a esmo. Lê jornais num parque, estica o quanto pode o almoço. À tarde, um golpe de sorte: dá de cara com Devanir!
Já restabelecido do tiroteio, Devanir agora lidera outra das pequenas organizações violentas, o Movimento Revolucionário Tiradentes. Ele oferece um  aparelho  para  Júlio  ficar até o dia seguinte, quando vai reencontrar o  Moisés.

Mas, não será tranquila sua permanência. O MRT tem uma ação armada programada, os militantes saem de madrugada.  Júlio  sente que é seu dever oferecer ajuda, cordialmente recusada:
— Muito obrigado, companheiro, mas como justificaremos para a VPR se acontecer alguma coisa com você?
Joaquim Seixas: outro executado
Não consegue dormir até a volta do grupo, claro. E eles chegam dizendo que saiu tudo errado e tiveram de alvejar os policiais de uma radiopatrulha. Um comenta que os dois cartuchos de .12 de sua garrucha atravessaram a porta do veículo:
— Foram pegar o policial lá dentro, acho que ele virou peneira...

Para piorar, temem que o  aparelho  seja descoberto (é relativamente próximo do local do tiroteio) e decidem abandoná-lo às pressas.  Júlio  fica novamente só, com um dia inteiro pela frente, até o ponto com Moisés, marcado para as 20h30".  (Náufrago da Utopia)
*  *  * 
"O MRT passou todo o ano de 1970 com a Frente, realizando ações armadas de expropriação e colaborando com a VPR no sequestro do cônsul-geral do Japão em São Paulo para obter a libertação de presos políticos.

No início de 1971, começou um processo de debates para formulação de sua linha política, mas a repressão se abateu pesada e dizimou seus principais dirigentes (Devanir Carvalho, Joaquim Alencar de Seixas e Dimas Antônio Cassemiro)...

Por volta de 11 horas da manhã do dia 5 de abril de 1971, Devanir chegou à rua Cruzeiro, n° 1.111, bairro de Tremembé, em São Paulo, onde foi recebido pela polícia com uma rajada de metralhadora, que o deixou imobilizado.

Levado para o Deops, passou a ser torturado pelo delegado Sérgio Fleury e sua equipe. Foi assassinado por volta das 18 horas do dia 7 de abril de 1971.
Delegado Sérgio Fleury: prazer em torturar até a morte!

Segundo a versão policial, Devanir foi morto em confronto com a polícia, mas o próprio delegado Fleury fazia questão de deixar claro que pretendia prendê-lo e levá-lo à morte por meio de tortura.

Esses avisos eram mandados pelos próprios irmãos de Devanir, que permaneceram presos de 1969 a 1970. Fleury dizia: 'Avisem ao Henrique (nome de guerra de Devanir) que encomendei nos Estados Unidos um bastão tranquilizante para poder pegá-lo vivo e que serei eu, pessoalmente, que o pegarei no pau'.

A família de Devanir prefere aceitar a versão de que ele foi morto em confronto com a polícia: 'É melhor para nós. É muito difícil pensar que meu pai foi torturado até a morte', diz o filho Ernesto."(Um exemplo de resistência)

*  *  * 
"A versão para a morte de Devanir indica que ele teria morrido em confronto com forças policiais... 

Os policiais do Dops/SP teriam chegado ao endereço que abrigava um aparelho do MRT no dia 5 de abril de 1971 e entrado em confronto armado com Devanir, que teria resistido à prisão. 
Restos mortais de Devanir não estavam no cemitério de Perus 

O laudo necroscópico produzido pelos legistas do Instituto Médico Legal de São Paulo confirma a versão apresentada pela polícia de que Devanir teria morrido em tiroteio no dia 5 de abril de 1971, especificando que sua morte teria sido decorrente de 'hemorragia traumática externa e interna por disparos de arma de fogo'.

Versão diferente fora enunciada por Ivan Seixas, militante do MRT, preso no dia 16 de abril de 1971 (..). Seixas afirma que foi com outros companheiros ao endereço na rua Cruzeiro, no dia seguinte ao tiroteio (...) Complementou dizendo que moradores da região testemunharam a prisão de um homem ferido, cuja descrição física seria compatível com a de Devanir. 

Ainda de acordo com Seixas, nos dias seguintes ao tiroteio e à subsequente prisão de Devanir, lideranças do MRT teriam recebido relatos de prisioneiros informando que Devanir teria morrido no dia 7 de abril de 1971, após dois dias de tortura sob custódia do delegado Sérgio Fleury.

Seixas lembra, por fim, que, em sua passagem pelo DOI-Codi e, posteriormente, pelo Dops/SP, ouviu, diversas vezes, os guardas e torturadores afirmando que Henrique teria sofrido dois dias nas mãos de Fleury sem ter revelado qualquer informação antes de morrer. 
Ocupação do MST  que leva o nome de Devanir de Carvalho
Em documento elaborado pelo Centro de Informações do Exército do Ministério do Exército, Devanir teria morrido no dia 7 de abril de 1971 em São Paulo.

A despeito de sua certidão de óbito, expedida em 20 de outubro de 1995, indicar como local de sepultamento o cemitério Dom Bosco, em Perus, efetivamente, o corpo de Devanir José de Carvalho fora enterrado no cemitério da Vila Formosa, conforme registra requisição de exame do IML/SP.

Diante das investigações realizadas, conclui-se que Devanir José de Carvalho morreu em decorrência de ações perpetradas por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar implantada no país a partir de abril de 1964."(Comissão Nacional da Verdade)

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