quinta-feira, 22 de junho de 2017

ARTIGO POLÊMICO SUSTENTA QUE O "ROUBA, MAS FAZ" VIROU UMA UNANIMIDADE NACIONAL

Por Celso Lungaretti
Mantendo a tradição de abrir espaço para visões surpreendentes e inusitadas da realidade brasileira, mesmo que parcialmente discrepantes dos posicionamentos assumidos pelos autores do blogue (como aqui se trava o bom combate, antípodas totais escritos que defendam abominações como o capitalismo, as ditaduras, a tortura, a destruição do meio ambiente, a pedofilia, etc. não fariam sentido publicarmos), o Náufrago reproduz nesta 5ª feira, 22, um texto dos mais polêmicos, na esperança de que sirva como um convite à reflexão e ao debate.

Até este que voz escreve teria objeções a fazer, discordando, p. ex., de que Lênin tenha sido um sanguinário cujos métodos só produziram o desastre. Mas, esta discussão seria longa e o objetivo deste post é estimular os leitores a se manifestarem, não o de reforçar aquilo que o blogue habitualmente sustenta.

O autor do artigo, Eugênio Bucci, dá aulas de graduação e pós-graduação na Escola de Comunicações e Artes da USP e integra o Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog, entre outras atividades, tendo recebido em 2013 o Prêmio Esso de melhor contribuição à imprensa.  
.
REENCARNAÇÕES DO ADEMARISMO
.
Por Eugênio Bucci
À custa de golfadas de mau gosto, a República do Brasil se repete não como farsa, mas como paródia. Bordões de antigamente ressurgem, regurgitados, com um sentido ainda mais cínico. É o que se dá com a máxima ademarista do rouba, mas faz, um dos mitos fundadores da política pátria.

Dia sim, dia não, a velha máxima vem abduzir a agenda nacional. Não faz uma semana, houve até a necessidade de que alguém esclarecesse que a doutrina do rouba, mas faz não foi o Maluf que fez. Embora a mística ademarista pareça, por vezes, viajar de carona em hostes malufistas, a autoria da receita rouba, mas faz é anterior ao condenado de Paris. Talvez seja anterior ao próprio Ademar de Barros, que apenas teria encarnado, com seu discurso e sua prática inconfundível, um princípio já enraizado na malandragem que nutria desejo pelo fraque e pelo voto.

Em governos mais recentes, que acenavam do palanque com a mão esquerda e contavam as cédulas com a direita (não apenas cédulas eleitorais), o rouba, mas faz ganhou nova acepção: rouba, mas faz obra social. Como supostamente faziam obras sociais, os adeptos desse ademarismo reciclado teriam autorização tácita para financiar de modo, digamos, não contabilizado a subsistência luxuosa dos agentes e operadores das alegadas realizações progressistas. Forjou-se assim o ademarismo canhoto, cuja eficácia eleitoral se mostrou poderosa, embora tenha sido institucionalmente corrosivo.
Era no ladrão Ademar que Jânio prometia usar sua vassoura

Outra variante surge agora, no desembalo do governo Michel Temer. Os protagonistas da gestão que aí está não se esforçam quase nada em denotar lisura e conduta ilibada. Em compensação, declaram-se integralmente empenhados em fazer aprovar as tais reformas. Estaríamos vivendo, então, como já foi apontado, sob a égide do rouba, mas faz reforma

Podemos fazer um adendo. Como as reformas são de perfil ultraliberal – ou mesmo neoliberal, como vem sendo dito –, o ideário político que se vai delineando no interregno Temer poderia ser apelidado de neoliberademarismo (com o perdão da brutalidade vocabular). O neoliberademarismo funciona. No mínimo, funcionou para segurar até aqui o governo de Michel Temer, o que, convenhamos, é uma proeza.

Aliás, o próprio significado da palavra reforma passou por uma reforma radical. Até há bem pouco tempo o substantivo reforma servia como contraponto ao substantivo revolução – e era um termo de esquerda. Os reformistas eram socialistas sinceros, apenas não apostavam no uso da violência para, como gostavam de dizer, transformar a sociedade

Os reformistas eram ex-revolucionários adaptados a novos tempos. Os reformistas tinham rompido com o leninismo, não acreditavam mais em organizar o levante armado das massas e duvidavam da estratégia de pegar em armas. Preferiam investir na via eleitoral, dentro da legalidade burguesa, e disputar a hegemonia, mais ou menos como propôs Antonio Gramsci. 
Daniel Cohn Bendit, a liderança mais notória da chamada Primavera de Paris (1968).
Agora, a palavra reforma, que antes integrava o léxico da esquerda, migrou para a direita. Defender a reforma (ou reformas) no Brasil atual é alinhar-se com Michel Temer, o reformista mais aguerrido. De direita.

O dicionário político contemporâneo vem dando uma pirueta atrás da outra. A palavra revolução virou slogan de propaganda de automóvel na TV – e na lembrança de uns poucos é uma saudade remota. Nos anos 1980, que já vão longe, Daniel Cohn-Bendit, o Dany le Rouge, líder das ruas revoltosas de Paris em maio de 68, escreveu um livro para celebrar essa saudade: Nous l’avons tant aimée, la révolution. No Brasil, na mesma época, Fernando Gabeira lançou um livro em que ele e Cohn-Bendit dialogavam sobre a mesma nostalgia: Nós que amávamos tanto a revolução
Lênin: moralmente superior aos esquerdistas desvirtuados de hoje

Pobre esquerda. Sem o monopólio sobre a palavra reforma, e sem ilusões na palavra revolução, bifurcou-se: uma corrente ama a reforma socializante, que anda em baixa; a outra é essa que está aí a nos dever um novo livro: Nós que roubávamos tanto a revolução. E como roubaram.

Chegamos aqui a uma variante mais complexa. Os chupins da utopia alheia configuraram uma categoria política não mais canhota, mas canhestra: o ademarismo-leninismo. Em meio a tantas e tamanhas reviravoltas semântico-políticas, fragmentos ressequidos do pensamento instrumental de Vladimir Ilitch Ulianov Lenin comparecem hoje ao submundo de ademaristas que acham que são leninistas. Haja comédia de mau gosto.

Francamente, Lenin não merecia isso. Sabemos que ele jamais cultivou virtudes burguesas e não dava a mínima para os limites da legalidade. Sabemos que seus métodos sanguinários só produziram o desastre. Mesmo assim, Lenin foi moralmente superior aos ademaristas que o veneram secretamente. Nunca lhe ocorreu transformar o partido bolchevique em máquina de assaltar o erário.
Esta unanimidade nacional era preferível...

Em seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo, publicado em 1920, Lenin admitiu expressamente que os comunistas deveriam conjugar a atividade legal (pública) e a atividade ilegal (clandestina), mas, para ele, a política definia-se pelas ações legais, públicas, e não pelas ações clandestinas. 

Ao comentar o caso do agente policial Roman Malinovski, que se infiltrou no partido e chegou a fazer parte do comitê central, ele reafirma que o que vale é a política implementada publicamente. Por isso, ele diz, até mesmo Malinovski, um espião inimigo, “se viu obrigado a contribuir para a educação de dezenas e dezenas de milhares de novos bolcheviques, através da imprensa legal (do partido)”.

Para Lenin, deixemos claro, a finalidade mais alta do partido era a política aberta, pública. Para o ademarismo-leninismo, ao contrário, a atividade pública do partido não passa de um atalho para a efetivação do roubo continuado. O que importa é privatizar o que é público, mesmo que para isso seja preciso fazer uma coisinha ou outra. 

À direita e à esquerda, quem diria, o ademarismo virou uma unanimidade nacional.

9 comentários:

SF disse...

Sempre estou lendo o blog e dou meus pitacos mesmo sem se convite, imagine com a expressa solicitação do Celso.

Pelo que entendo da sofisticada interpretação marxista dos autores desta página, existe uma corrupção fundamental no modo de produção capitalista.

Assim, com verve e humor o Eugênio mostra mais uma das facetas dessa corrupção ampla, geral e irrestrita.

Ainda mais na política!

Gostei das expressões: "ademarismo canhoto" e "nós que roubávamos tanto a revolução".

Ri muito.

Quanto a Lenin (a múmia moscovita) digo que, depois de morto, todo mundo é bom.

Mas, podem acreditar que ele, e qualquer um de nós, dará mais importância a uma dor de dente que esteja sentindo do que ao futuro da humanidade.

A foto dele é esclarecedora para mim. Sempre desconfio de ilustrações que mostram o líder gigantesco e os liderados como uma massa desfocada, minúscula e uniforme.

É preciso muita auto-enganação para não perceber o narcisismo doentio deste tipo de apresentação. E neuroses narcísicas são incuráveis.

Por fim, a mania de rotular esquerda e direita...

No meu nordeste velho se diz: são todos farinha do mesmo bisaco!

E como perguntavam os Novos Baianos: por que não viver?

celsolungaretti disse...

Companheiro,

pensar com a própria cabeça ao invés de seguir o rebanho é salutar, mas se trata de uma postura que deve vir acompanhada de alguma disposição para informar-se sobre os assuntos em questão.

Você é bem intuitivo e consegue fazer reflexões interessantes sobre os artigos do Dalton, sem dúvida. Mas, no caso do Lênin, parece-me desinformado sobre o personagem. Irmão mais novo de um daqueles terroristas empenhados em mandar o czar e seus ministros pelos ares, ele sofreu um abalo profundo quando o jovem Alexander foi enforcado por causa da mera participação no planejamento de um atentado que nunca saiu do papel: a polícia descobriu antes e prendeu todos os envolvidos.

A partir daí, dedicou o resto da vida à causa revolucionária, sofrendo todas as consequências da opção assumida. Era estoico e determinado, muito longe de dar mais importância a uma dor de dente que estivesse sentindo do que ao futuro da humanidade.

E não foi por culpa dele que Stalin mumificou seu cadáver. Pelo contrário, no final de vida, já combalido, ele se convenceu de que Stalin seria profundamente nocivo à revolução soviética e escreveu uma carta devastadora para o Trotsky utilizar num congresso do partido, para fazer com que o georgiano caísse em desgraça e perdesse a posição de dirigente.

Trotsky, contudo, achou que Lênin exagerava e se contentou com uma autocrítica de Stalin, deixando de ler publicamente a carta. Como costuma acontecer com homens brilhantes, Trotsky subestimou o rival potencial que, intelectualmente, era muito inferior a ele. E pagou um preço caríssimo por isto, pois a revolução soviética entrou numa fase de burocratização totalitária e o perfil de um super-burocrata passou a valer mais que o de um intelectual revolucionário de primeira grandeza.

SF disse...

É Celso não há como não reconhecer o teórico e estrategista que foi Vladimir Ilyich Ulyanov. O bendito Lenin.

Você trouxe notícias de uma carta dele ao Leon detonando o stalin.

Haveria cópia traduzida dela?

Esta comparação da dor de dente é um recurso semelhante ao que Andersen utilizou em A Roupa Nova do Imperador.

Quanto a iconografia do gigantismo dos líderes é um truque antigo, muito, muito antigo.
Ao vê-la descreio imediatamente que algo de novo exista naquele tipo de sistema de liderança e organização.

celsolungaretti disse...

Pô, meu, vc é jovem e eu, idoso. Então, vá pesquisar um pouquinho.

Quem mais detalhadamente abordou o episódio da carta-testamento do Lênin foi o Isaac Deutscher, no livro O PROFETA DESARMADO. Não é uma obra fácil de achar hoje em dia, mas as melhores bibliotecas públicas têm.

O meu, há muito tempo virou grana para supermercado: vendi-o num sebo, em tempo de vacas magras.

SF disse...

Tranquilo.

Grato pela dica do livro.

SF disse...

Encontrei o texto da carta no site marxists.org.

Destaco estes trechos:

"O camarada Stálin, tendo chegado ao Secretariado Geral, tem concentrado em suas mãos um poder enorme, e não estou seguro que sempre irá utilizá-lo com suficiente prudência."

"Stálin é brusco demais, e este defeito, plenamente tolerável em nosso meio e entre nós, os comunistas, se coloca intolerável no cargo de Secretário Geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem a forma de passar Stálin a outro posto e nomear a este cargo outro homem que se diferencie do camarada Stálin em todos os demais aspectos apenas por uma vantagem a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais atento com os camaradas, menos caprichoso, etc."

Pelo que entendi foram essas palavras que desqualificavam José para ser secretário geral.

Seria necessário um aprofundamento maior sobre toda a história da revolução bolchevique e o sobre os seus personagens, para que pudesse entender como, em dois parágrafos, o Vladimir estaria detonando o Joseph.

Ou só valia a palavra dele (do Lenin) no CC?

Mas, para você não pensar que não reconheço o valor dos grandes homens, fica claro, para mim, que esses caras fizeram muito e deram o melhor de si na implantação do seu ideal.

Porém, mesmo os melhores não conseguem criar a fraternidade e a comunhão entre os seres humanos.

Sei que existe essa possibilidade, mas não ocorreu em sua plenitude ainda.

Dalton espera o fim do capitalismo, Lenin o vitória do proletariado e eu me conformaria com versões mais ampliadas de Marinaleda na Andaluzia.

Mas o que temos até home é sempre a mesma trama da briga pelo poder, repetida ad nauseam.

Forte abraço.


celsolungaretti disse...

O Lênin forjou o partido que fez a revolução. Sua autoridade moral era enorme e inquestionável. Se o Trotsky tivesse lido a carta no congresso do partido, Stalin seria inevitavelmente removido do cargo de secretário-geral, que foi o grande instrumento de sua tomada de poder, já que havia desempenhado papel secundário na revolução.

Ler a carta não basta, eu te recomendei o livro do Isaac Deutscher porque ele a contextualiza. Embora a crítica não pareça tão pesada assim, em se tratando do Lênin e da forma como geralmente se referia aos dirigentes do partido, era muito contundente.

Na verdade, o Lênin estava furioso porque mandara sua mulher, a Krupskaja, pedir ao Stalin alguns dados de que ele necessitava para redigir um artigo (o qual colocaria em evidência um erro grave do próprio Stalin) e ele a destratou. Somado a outros indícios, este episódio levou o Lênin a decidir afastar Stalin das posições de mando. E orientou o Trotsky a agir impiedosamente neste sentido.

Mas o Trotsky, desprezando Stalin por ser intelectual e politicamente muito inferior, não levou a questão tão a sério. Foi uma desgraça para ele, para a revolução soviética e para todo o movimento comunista, que o georgiano reduziu a uma mera mistura de capitalismo de estado na economia com despotismo na política.

SF disse...

Celso,

Sempre fico feliz quando me chamam de jovem, sinal que não aparento a idade que tenho.
Porém, se você tem problemas com a audição eu tenho que poupar a visão que já não é mais a mesma da juventude.

Isto posto, procurei ler uma resenha do livro feita pelo Paulo Henrique Marçaioli (blogspot esperandopaulo) sobre o livro "Trotsky - O Profeta Desarmado" - Isaac Deutscher. (Ler o livro seria um desgaste demasiado)

Pois bem,
Entendi que Lenin foi um cara muito respeitado e que se viu as voltas com a contra-revolução.

O que ele fez? Partiu para luta, eliminou o pluripartidarismo e implantou o partido único!

Só que ele era um cara mais saudável mentalmente e o Partidão parecia algo como "centralismo democrático - total fidelidade à revolução e às deliberações coletivas e liberdades democráticas nos fóruns de decisão partidário".

Mas tinha porque tinha de ser comunista.

O que aconteceu com os que não concordaram e tiveram os rótulos de "não comunistas", você deve saber melhor do que eu.
Imagino que estão na vala.

Daí ele morreu.
Joseph jogou o jogo e era mais cruel e patife do que o Zinoviev, Kamanev e caterva.

Na minha opinião, o que Joseph fez foi chutar para gol a bola levantada por Vladimir Ilyich, pois foi a estrutura centralizadora, intolerante, dogmática e autoritária que ele (Lenin) criou quem possibilitou o monolitismo e o poder absoluto de Stalin.

Joseph sabia que Ilyich Lenin tinha criado as condições para ele existisse, por isso o mumificou!

Veja bem o que a neurose narcísica faz!

E mais não digo, nem me atrevo.

celsolungaretti disse...

Uma obra fundamental do Lênin é O ESTADO E A REVOLUÇÃO, publicado às vésperas da Revolução de Outubro. Nela ele defende a ditadura do proletariado como uma forma temporária de defesa de um jovem regime socialista até que deslanchasse a revolução mundial.

Afirmou enfaticamente que os comunistas só deveriam controlar o Estado para prepararem as condições para a abolição do Estado.

Evidentemente, o Stalin fez exatamente o contrário: agiu para eternizar o Estado e subjugar cada vez mais o proletariado, tratando-o como OBJETO e não SUJEITO da revolução.

Isto porque, evidentemente, a fonte do seu poder era a nomenklatura privilegiada. No comunismo com que Lênin e Trotsky sonhavam, o cidadão comum cada vez mais assumiria, como parte da sua rotina, as funções antes exercidas por burocratas dedicados apenas ao gerenciamento do trabalho alheio (tanto que Milovan Dilas os qualificou de uma "nova classe", que teria substituído a burguesia).

Enfim, lamento o seu problema de visão, mas visões simplistas da Revolução Soviética não fazem justiça a um dos acontecimentos mais importantes do século 20. No final do ano virá uma enxurrada de textos sobre seu centenário, aí você poderá informar-se melhor.

Related Posts with Thumbnails