"Nada se parece mais com o pensamento
mítico do que a ideologia política"
(Claude Lévi-Strauss, antropólogo)
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Francisco de Assis (nome escolhido pela sua mãe, por devoção religiosa), apelidado de Chico Passeata, era o filho mais novo de uma família de operários metalúrgicos que migrara do nordeste há mais de três décadas e morava em São Paulo.
Chico Passeata, com seus 24 anos de idade, já nascera em São Paulo, e estava desempregado. Abandonara o colégio antes do término do 2º grau e agora se entregava inteiramente à militância no movimento sindical dito progressista da CUT, detestando aqueles a quem chamava de pelegos da Força Sindical. Considerava-se completamente diferente destes últimos.
Tinha um irmão dois anos mais velho, Carlos Frederico, que estudava filosofia e recebera tal nome como uma homenagem do seu pai, antigo militante do pecebão, a Karl Marx e Friedrich Engels.
Este, que o pai sonhara ver tornar-se marxista, era conhecido como Fred Nerd, por seu ar intelectual sua disposição de sempre tentar compreender os segredos da vida e a elucubrar sobre cada atitude individual ou coletiva. Ao invés das tradicionais camisas vermelhas costumava usar roupas pretas; naquela noite de 5ª feira vestia uma camiseta que tinha, na frente, os dizeres as meninas boas vão para o céu... e, atrás, ...as meninas más, vão para onde quiserem.
Chico Passeata separava a bandeira vermelha da CUT e a camiseta vermelha com a espirituosa frase Lutar sempre, Temer jamais! que usaria no tão aguardado dia seguinte, a 6ª feira da greve geral.
O protesto também tem sua grife... |
Este, que a mãe sonhara ver tornar-se franciscano, dividia um quartinho com o irmão, num apartamento de 70 m² de conjunto habitacional, apertadíssimo para uma família de cinco pessoas (pai, mãe, tia e os dois filhos já adultos). Ele não parava de receber telefonemas e fazer ligações no seu celular, articulando a mobilização do dia seguinte.
A um companheiro perguntou se as faixas abaixo a reforma trabalhista e por uma política de mais emprego tinham sido providenciadas. A outros, se os piquetes nas portas das garagens de ônibus estavam bem programados e se os coquetéis molotov e archotes inflamáveis seriam suficientes para incendiar aqueles ônibus que ousassem trafegar durante a greve. Era uma ansiedade só.
Fred tudo observava impassível, sentado na sua pequena escrivaninha, com a luz focando no livro que relia, um romance policial tendo como pano de fundo a vida política e social na Rússia czarista de 1866: Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski.
Chico se irritava com a postura do irmão: não compreendia como alguém dotado de certa cultura e que falava em revolução e emancipação humana, podia ser tão indiferente ao que considerava como um momento vital na vida política brasileira – a greve geral do dia seguinte.
Considerava o irmão, a quem dedicava um amor crítico, como alguém culto e sensível, mas totalmente destituído de sentido prático; portanto, todo o seu saber seria um desperdício e um inutilidade. Fred lhe despertava um misto de admiração e frustração.
Naquele dia tal alheamento incomodou tanto Chico que ele provocou Fred:
— Enquanto você fica aí sentado com esse livro, indiferente a tudo, os caras estão aprovando a reforma trabalhista que nos retiram os direito, Mano. Com sua passividade você contribui com os home, tá sabeno?
"A questão é saber como e para onde você quer ir" |
Sem alterar-se e sem se virar para o irmão, Fred responde:
— E você, quanto mais acelera o seu carro na direção do seu pretenso objetivo, mais dele se distancia.
Aí Chico pega pressão e altera a voz, indignado:
— Como assim, mano? Por acaso ficar calado e se omitir da luta é correto?
Fred explica:
— A questão não é se omitir do confronto, mas saber como e para onde você quer ir. Se pega a estrada errada, quanto mais acelera o seu caro mais se distancia do ponto em que você deseja chegar. Com essas bandeiras que eu vi e ouvi você defender, você apenas está desejando mais do mesmo, e dificultando ainda mais a superação do que é ruim e está posto.
— Ora, Fred! Você aceita a retirada dos direitos trabalhistas?
— Não, eu sou contra o próprio direito trabalhista.
— Então você á a favor da exploração pelos patrões?
— Não, Chico. Eu sou contra a existência de patrões.
"O dinheiro é um modo de escravização de todos nós" |
— Então você quer que o Estado seja dono de tudo e que se acabe com os patrões?
— Não. Eu sou contra a existência do Estado e de tudo que ele encarna, e principalmente o Estado como patrão!
— Ora, Fred, eu não entendo nada do que você diz. Você é contra tudo; os patrões e os trabalhadores ao mesmo tempo. Você está em cima do muro?
— Não. Eu também sou contra a existência do tal muro que somente na aparência os separa. Eles são faces de uma mesma moeda. Literalmente.
— Arre, égua! [expressão que ouvia em casa desde menino, como filho de bom cearense que era] Você é contra tudo. Me explique isso direito.
— Chico, vocês estão reivindicando direitos trabalhistas que representam a permanência do trabalho e do trabalhador, sem compreenderem que tanto uma coisa como a outra são categorias imanentes ao capitalismo que dizem combater. Vocês reforçam e justificam aquilo que combatem.
— E o que é que você acha que eu devo defender?
— Vocês deveriam defender o fim do trabalho e do trabalhador, pois enquanto categorias capitalistas que são, elas apenas contribuem para a formação do capital, seja ele gerenciado pelo patrão privado ou pelo patrão estado.
"Vocês deveriam defender o fim do trabalho e do trabalhador" |
— Mas, Fred, isso que você defende é impossível de acontecer. Você, como sempre, está com a cabeça na lua, e se omite diante da opressão concreta. É preciso agir.
— O impossível está na sua cabeça, e agir não é necessariamente sempre o mais correto e eficaz. A omissão pode ser até mais violenta do que a ação. Mais vale você parar de ser trabalhador e se negar a produzir valor do que exigir direitos trabalhistas que não virão na atual conjuntura.
— Mas se nós pararmos de trabalhar definitivamente, como você quer, quem é que vai pagar os nossos salários?
— Aí é que está. Nós temos de abolir não apenas o trabalho e salário, mas o dinheiro como modo de mediação social. O dinheiro é um modo de escravização de todos nós e os trabalhadores contribuem para a sua existência. Pedir direitos trabalhistas é afirmar o trabalho, a exploração feita por meio dele e o próprio capital que você diz combater.
— Mas, como é que nós vamos viver sem trabalho e sem dinheiro?
"De que adianta remover Temer e os deputados elegerem outro?" |
— Você não compreende que, ao considerar o trabalho e o dinheiro como indispensáveis à vida, está afirmando um modo de negação da própria vida? Nenhum objeto destinado ao consumo humano tem um grama sequer de dinheiro; e o esforço humano para a produção de qualquer objeto que sirva para tal consumo não significa que somente possa ser obtido por meio da produção de mercadorias e do salário,que é a tradução do trabalho que vocês tanto defendem. O esforço humano individual ou coletivo de produção de bens e serviços deve ter outro conteúdo, em lugar de mercadorias e trabalho. Tem de ser apenas produtor de vida e gerador de abundância.
A expressão de Chico já revela alguma impaciência, mas Fred prossegue:
— Outra coisa, nós todos temos de deixar de ser trabalhadores economicamente ativos, passando a ser pessoas socialmente contributivas. Isso não tem nada a haver com a produção de valor, ora travada pelas contradições internas do capital.
— Pára aí Você já está fundindo a minha cuca com essa sua conversa complicada. Quer dizer que você é contra o nosso protesto é contra até o fora Temer!, esse golpista oportunista que já vai completar um ano de governo e só faz aumentar o desemprego, que já passou de 14 milhões de trabalhadores...
"Novos ônibus serão fabricados após os incêndios" |
— A questão que se coloca não é o fora Temer!, mas fora a política e o sistema que o produziu e o mantém!. De que adianta remover o Temer e os deputados elegerem outro dos seus? Aliás, ainda que houvesse eleições, surgiria um pilantra qualquer se arvorando de salvador da pátria e iria engabelar o povo de novo.
Resolvido a dessa vez ir até o fim com seus questionamentos, Fred acrescenta:
— Ademais, Chico, eu ouvi você falando sobre tacar fogo nos ônibus. Isso é somente uma forma de retirar a legitimidade do protesto e se descredenciar perante as pessoas, que encaram esses atos como desesperados e inconsequentes. Novos ônibus serão fabricados após os incêndios, a exploração do suor dos trabalhadores continuará gerando lucros para a indústria automobilística e tudo continuará na mesma. Muito mais violento e eficaz do que queimar ônibus, fazer saques e depredar bancos seria nós todos cruzarmos pacificamente os braços diante do trabalho, até no interior das nossas casas, definitivamente, conscientemente, sabendo o porquê dessa atitude, e não somente num dia de greve.
— Pára aí, mano. O que você quer é impossível e eu não vou mais me estressar com a sua conversa fiada. O que vale é a ação prática, tá sabeno? Chega de filosofia.
Fred voltou a ler seu livro e Chico fingiu dormir, enquanto refletia sobre tudo que ouvira e sobre o que se programara a fazer no dia seguinte. Não pregou olhos bem cedinho saiu para dar apoio à greve, mas agora sem muita convicção da correção de todo o ativismo grevista e suas bandeiras.
"...aliviado por não ter sido atingido pela bala de borracha..." |
Estava decidido a depois refletir melhor sobre aquela conversa noturna, pois trazia no seu coração o sentimento revolucionário de combate à injustiça. Só lhe faltava agregar ao seu voluntarismo a consciência crítica.
No final do dia Fred voltou para casa, exausto, com os olhos irritados pelo gás lacrimogênio e aliviado por não ter sido atingido pela bala de borracha que passara tão perto de sua cabeça.
Tudo voltou a ser como dantes no quartel de Abrantes. O ministro da Justiça garantia que a greve fora um fracasso, enquanto os sindicalistas e os partidos de oposição afirmavam ter feito um protesto significativo. (por Dalton Rosado)
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