sábado, 12 de novembro de 2016

NA GUERRA, QUEM MORRE SÃO OS PEÕES...

"O erro da ditadura foi torturar e não matar”
 (deputado federal Jair Bolsonaro, militar da reserva)
. 
Quando analisamos os fatos ocorridos na 1ª Guerra Mundial (que decorreu do desenvolvimento de um novo nível de produtividade de mercadorias como consequência da segunda revolução industrial fordista estadunidense do início do século XX e fenômenos sociais por ela desencadeados, que geraram a disputa pela hegemonia do mercado internacional), podemos extrair alguns ensinamentos elucidativos quanto ao sentido deste genocídio que ceifou a vida de 20 milhões de pessoas. Tratou-se do da primeira aparição dos sintomas, hoje, consolidados, do que viria a ser a globalização dos mercados.

Naquele que foi até então o maior confronto militar da História, demonstrando toda a bestialidade da chamada civilização ocidental, forças militares europeias, sedentas de poderio econômico-militar, jogaram na fogueira de uma sangrenta guerra mundial (na qual foram utilizados gases mortíferos contra soldados entrincheirados e sem proteção suficiente contra tal recurso ignóbil), milhões de homens incultos que sequer sabiam o porquê de ali estarem e sem que sequer entendessem o idioma dos seus companheiros de armas e adversários. 

A maioria desses homens vinha das colônias europeias na Ásia e na África (principalmente os indianos, chineses e africanos da costa ocidental norte da África, mas também de muitos outros lugares). 

Foram milhões de pessoas trazidas compulsoriamente de seus rincões rurais e doutrinadas para o heroísmo militar por chefes militares que falavam os seus idiomas ou dialetos. 

São muitos os tristes relatos dos soldados saudosos das suas terras natais; da incompreensão quanto ao que estavam fazendo (matar pessoas contra as quais não tinham o menor ressentimento); e da certeza da morte iminente, que ficaram gravados em cartas, fotos, filmes e até em falas e músicas em gravações de discos.     

Eram peões, enfim. 

Recorro a este exemplo histórico, emblemático do caráter belicista do capitalismo (que elimina todo e qualquer sentido de convivência fraterna e virtudes humanas, positivando o seu oposto), para dizer que vivemos sob uma mesma mentalidade, cem anos após. 

O festival de horrores foi mais intenso ainda na 2ª Guerra Mundial, ocorrida apenas 21 anos depois, cujo balanço macabro saltou para mais de 50 milhões de óbitos. Então, não podemos jamais esquecer estas lições que parecem já se esmaecer em nossa memória coletiva, embora estejam muito longe de pertencerem a um passado sem conexão com o presente. 

Ledo engano. As causas da guerra de ontem são as mesmas dos dias de hoje, com o agravamento das diferenças próprias da realidade tecnológica, com seus impasses político-econômicos e monstruosa letalidade. 

Às guerras convencionais que ocorrem hoje mundo afora, ou conflitos políticos internos de guerras civis que não são poucos (Ucrânia, Síria, Cáucaso do Norte, Iraque, Afeganistão, Mali, Nigéria, Sudão, Sudão do Sul, Líbia, República Cento-Africana, Somália, República do Congo, Paquistão, Filipinas, Iêmen, Israel/Palestina, e outras) somam-se sintomas de guerra urbana como as explosões de revoltas contra a intolerância racista nos Estados Unidos. 

Tudo isso resulta de uma forma de mediação social one world que se tornou anacrônica. 

No Brasil, país tido tradicionalmente como infenso às guerras convencionais e que promove uma das maiores miscigenações raciais do planeta (que é, verdadeiramente, um mérito nosso!), observamos um número de assassinatos urbanos que supera muitas das guerras hoje em curso e acima citadas. 

Tivemos em 2014 uma média nacional de 143 mortes por homicídios/dia (hoje está maior), que correspondeu a um total de mais de 52.000 óbitos por ano. Espantosas e inaceitáveis 25,81 mortes para cada 100 mil habitantes, que, se lhes fossem aplicados os critérios da Organização Mundial de Saúde, equivaleriam a um surto epidêmico. 

O pacifista Brasil tem uma guerra urbana cujas causas e consequências são atribuídas única e exclusivamente à ineficiência do aparato policial, sem que se discutam as causas e responsabilidades sistêmicas em tal genocídio. 

A grande maioria das pessoas que engrossam essas estatísticas é de jovens pobres da periferia, em sua maioria negros, miscigenados de negros, índios e brancos pobres, analfabetos. Integrantes, enfim, da geração nem-nem (que nem estuda nem trabalha, não apenas por culpa deles mesmos, mas também, e principalmente, devido a questões estruturais sistêmicas). 

Podemos concluir sem qualquer esforço sociológico mais acurado que somos uma fábrica de criminosos marginalizados e descamisados (afora os tradicionais criminosos do colarinho branco, que aqui brotam como cogumelos, mas não são encontrados nas estatísticas de assassinatos).  

Não há estrutura policial, judiciária e prisional que possa conter tal avalanche de criminalidade. 

Qualquer um que analise o dia-a-dia de uma delegacia em qualquer estado brasileiro vai notar a total incapacidade do aparelho policial em cumprir a sua função social (e isto quando seus membros não estão em greve, o que vem ocorrendo com frequência...). 

Da mesma forma, o aparelho judiciário (juízes, promotores públicos, funcionários e logística funcional) vem se mostrando incapaz de cumprir os trâmites legais e e julgar todos os processos. 

E, por fim, podemos constatar que os estabelecimentos prisionais nos remetem às masmorras medievais, como todos sabemos e como deve ter observado a ministra Carmem Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça, ao visitar recentemente tais estabelecimentos.

Um preso é financeiramente mais oneroso do que um professor e o Estado capitalista falido, agora com dificuldades de pagar até salários de aposentados e funcionários ativos, não pode fazer frente a criminalidade de tal proporção. Assim, os seus agentes policiais matam e morrem sem que nos aproximemos um milímetro da solução de tal problema social crônico. 

Daí a impropriedade (para não dizer ignomínia) de se considerar que a responsabilidade pelo genocídio urbano brasileiro é das vítimas. E seria também hipócrita inculpar apenas as autoridades, fazendo de conta que não temos nada com isso, numa cômoda transferência de responsabilidades, até sermos atingidos pessoalmente pela violência... 

Nas estatísticas das mortes estão também incluídos os jovens policiais egressos da periferia que, do assim como antigos feitores negros de escravos (ou como alguns judeus nos campos de concentração nazistas), açoitam os seus irmãos de raça, matando e morrendo em nome de um sistema que oprime a todos eles. 

Seja na guerra convencional ou na urbana, hoje como ontem, os que morrem são quase sempre os peões. 
Por Dalton Rosado

10 comentários:

william Orth disse...

Caro Celso, concordo com quase tudo que escreveu. Mas o grande argumento dos que criticam os regimes de esquerda ( e com grande razão) são as mortes , cerca de 150 milhões na China e Rússia quando implantaram seus regimes de esquerda. Neste assunto sou quase um observador mas o "comunismo" matou mais gente. Me corrija se estiver errado, essa sempre foi uma grande dúvida que tive. Abraço.

celsolungaretti disse...

Meu caro William,

desculpe se isto não ficou muito claro, mas o texto é de autoria do Dalton Rosado. Repare na última linha. E, certamente, ele deverá lhe responder.

De qualquer forma, eu antecipo que o número de 150 milhões de mortes é uma ficção propagandística, a metade estará mais próxima da verdade. Não deixa de ser algo chocante e inaceitável, mas esse tipo de exagero é quase sempre cometido de má fé (por parte de quem escreveu o que você leu, não sua, evidentemente).

Quanto a imputar aos ideais de Marx e Proudhon os pecados do chamado "socialismo real", é outra prática muito discutível. O capitalismo foi implantado plenamente, conforme suas propostas e valores. Os regimes soviéticos e chinês têm pouquíssimo a ver com o que os grandes teóricos da esquerda propunham.

Sempre se pensou em algo que viria DEPOIS do capitalismo, em nações cujas forças produtivas já estivessem atingido um estágio apreciável de desenvolvimento, não na instalação de regimes híbridos em países de desenvolvimento tardio como a Rússia e a China, no qual os novos regimes tiveram de criar primeiramente a infra-estrutura básica de uma nação moderna.

O fato de serem países inadequados para o que se pretendia, mais o cerco militar e o embargo econômico desencadeados pelas nações capitalistas (que chegaram a invadir a URSS com tropas de vários países no período 1918/21), tem quase tudo a ver com as distorções do "socialismo real".

Anônimo disse...

Ao William

Quando ouço falar nos cem milhões de mortos do comunismo, agora querem e levar a contagem para 150 milhões, e pelo visto em breve todos desde a morte de Abel...

Os crimes cometidos pelo comunismo foram inúmeros: prisões, torturas e assassinatos. Coisa que todos os demais sistemas políticos fazem. Não digam que as democracias liberais não, fazem e muito. Geralmente fora de casa, mas as vítimas continuam humanas do mesmo modo.

O caso da URSS é exemplar. Primeiro a guerra civil, ambos os lados cometeram todas as atrocidades possíveis e imagináveis; depois a fome que resultou da devastação do país e somente os comunistas são os responsáveis? Não tem algo errado? Não existia um outro lado que lutou contra eles e também foi responsável pela destruição? Então aqui os números para o comunismo e o capitalismo são os mesmos. Pode-se fazer a contagem em duplicidade dos mortos. Uma para cada lado.

Na época de Stalin tivemos o Holodomor, assim batizado para dizer como os russos foram ruins para com os ucranianos e eles fazerem a separação do país. Não que a coletivização forçada das terras não tenha destruído várias colheitas e produzido muitos mortos, mas os números obtidos foram com análises dos censos, mas sabem de uma coisa? Do outro lado do oceano, num país chamado EUA, o crescimento democrático do mesmo período foi menor que o da década de 1970, já com a ampla utilização da pílula anticoncepcional. Temos ou não algo errado? O tal do baby boom foi apenas o regresso aos índices de nascimento da década de 1920... por que nunca encontrei um estudo sério sobre isso?

O comunismo matou muita gente, mas quantos morreram durante o domínio colonial e as guerras de independência para se libertarem do homem ocidental branco e cristão? Indonésia, Índia, Argélia, Quênia, Angola, Congo, Vietnã, etc. etc. etc. etc. etc. etc.

celsolungaretti disse...

RESPOSTA ENVIADA POR E-MAIL PELO DALTON

Caro William Orth,

a história da humanidade após o período irracional (primeira natureza) e da criação dos grupos populacionais primitivos (segunda natureza) que tudo partilhavam e que ainda hoje existem no interior profundo da Amazônia, é marcada:

(i) pela escravização direta, na qual os escravos não produziam valor mediante salário, sendo tratados com insubsistentes rações e aprisionados em ambientes insalubres e fétidos, como se fossem animais;

(ii) pela escravização indireta, dos salários (trabalho abstrato produtor de valor), na qual o valor produzido pelo trabalhador numa faina diária somente é remunerado parcialmente (trabalho necessário), enquanto o restante é capitalizado pelo capitalista, vez que não é remunerado (trabalho excedente). Esse é o mecanismo da moderna escravização.

Nenhum dos países ditos comunistas, marxistas-leninistas, buscou a eliminação completa desse tipo de escravização. Apenas afirmaram (e ainda afirmam, os poucos remanescentes) que eliminando esse roubo pelo capital privado, acima explicitado (que caracteriza a escravização indireta) estariam combatendo o capitalismo. Ora, não interessa quem é o ladrão, se o capitalista privado ou o capitalista Estado, pois a lógica capitalista é autotélica, e requer a acumulação ad infinitum da riqueza abstrata produdida, valor, (que trava num determinado ponto futuro, que ora começa a ser atingido) e que inviabiliza a distribuição equânime da riqueza material. Essa é a razão da abertura de Rússia e China ao capitalismo de mercado internacional
.
Assim, nunca tivemos uma relação social verdadeiramente libertária, que seja capaz de promover a emancipação humana do jugo do capital.

==================== CONTINUA ====================

celsolungaretti disse...

==================== CONTINUAÇÃO ====================

Agora, graças às contradições inerentes à própria lógica funcional do capital (que é destrutiva e autodestrutiva por mecanismos complexos que não é possível explanar numa breve justificativa da gênese da violência como a que ora faço), estamos vivendo o mais grave impasse experimentado pela humanidade nos últimos milênios que se traduz nas seguintes opções:

a) a opção pela guerra definitiva que poderá causar a extinção da humanidade (potencial bélico atômico para isso já existe) ou pela crise ecológica irreversível com o mesmo desfecho;

b) ou a superação do modo escravista de produção social mercantil pelo trabalho abstrato, com a consequente emancipação humana sob as bases humanas racionais e sustentáveis.

Todos os morticínios desse período escravista direto e indireto são explicados pelo fato de que a imposição da escravidão e da irracio0nal ganância da acumulação capitalista requer a coerção bélica que subjuga os escravizados. A falsa dicotomia entre o modelo político capitalista liberal ou estatista deve ser denunciado, pois insistir nela é repetir a eterna cantilena politica entre esquerda e direita (ambas vivendo sob a égide de uma mesma base de mediação social, na qual as diferenças são meramente cosméticas).

É assim que entendo o absurdo histórico de violência do passado e que agora se agudiza no presente.

Um abraço, Dalton Rosado.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Ao William, com um complemento ao que o Rebolla escreveu.

Enquanto aquela coisa inacreditável que foi a Primeira Guerra Mundial era preparada, com uma euforia até hoje difícil de explicar (era como se os povos a serem submetidos ao tacão de ferro da guerra estivessem se preparando para qualquer coisa semelhante a uma Copa do Mundo, os registros da época são estarrecedores), os únicos a se oporem integralmente à loucura foram os comunistas russos e sérvios, dirigidos por Lênin. Mais tarde, nos anos 1930, a União Soviética era o primeiro país a assumir posições detalhadas, bastante lúcidas e firmes, pelo desarmamento mundial, ignorada ou ridicularizada pela Liga das Nações.

Morreu muita gente na União Soviética. Mas, para além do regime "stalinista", os russos saíram da guerra mundial, passaram pela guerra civil, terminaram isolados, e logo após um conjunto de forças internacionais preparou a "Grande Guerra Patriótica", como os russos chamam a Segunda Guerra Mundial. O regime de Stálin matou sim muita gente, um regime de força decidido a acelerar o crescimento das forças produtivos a qualquer custo em termos humanos, mas todo o conjunto de circunstâncias era imensamente mortal. Este é um assunto controverso até hoje.

Quando a revolução chinesa triunfou, após 22 anos de guerra civil, fragmentação e dominação estrangeira, considerando-se apenas o período que vai de 1927 a 1949, o país não possuía indústrias. Mao procurou contornar a péssima situação em que o país se encontrava, em termos estruturais, chamando os camponeses pobres a tomarem os rumos da economia e da política, e foi um desastre, com milhões de mortos pela fome. Este foi o chamado "Grande Salto à Frente", implementado em 1958. Um desastre, deu tudo errado. Ainda assim, seria interessante imaginar que coisa seria a China, hoje, sem a revolução encabeçada por Mao. A revolução de 1949, ademais, foi até bem moderada e pacífica, uma revolução genuinamente democrática como dizem os chineses. Duras, dificílimas, eram as condições do país, e permaneceram assim por algumas décadas.

Não gosto do termo "stalinismo", confunde muito e explica pouco. Se quisermos, qualquer coisa é "stalinismo", embora a mania atual seja a de carimbar "fascismo" em tudo quanto se mova e nos desagrade. Penso que podemos ter uma visão mais independente, sem tanto apego, cética no melhor sentido da palavra ceticismo e tão desapaixonada quanto possível, quanto a esse assunto do comunismo no séc. XX.

E, certamente, o capitalismo mundial é muito mais mortal que qualquer regime soviético. Os 63 milhões de refugiados que há no mundo não são vítimas de nenhum país "comunista", nem toda a população de desvalidos de todos os tipos estão atados pelas cordas de aço do "stalinismo". E mesmo as armas nucleares foram usadas pra valer, ao que se sabe, duas vezes. Não foram lançadas pela União Soviética, nem pela República Popular da China.

SF disse...

Que síntese do Dalton!
Acredito que esse texto-resposta foi uma das mais bem concatenadas e resumidas explicações sobre as condições da sociedade humana atualmente.
Por essas e outros, sempre estou lendo o "Naufrago".

Apollo disse...

Há 10 anos eu pagava mensalidade astronômica na faculdade jornalismo. Há 50 anos meus sofridos estudos de Direito na USP eram de graça. Valeu a pela, pois essas gotas de conhecimento adquirido me fazem hoje ver o mundo com alguma nitidez, a política, as motivações das guerras, a economia, a Justiça, o sistema capitalista, o comunismo, a direita, a esquerda, a democracia. Qual não é a minha surpresa em ter hoje, de graça, a remoção da cortina de fumaça que me permitir ver, agora sim, com clareza, o verdadeiro andar da carruagem da história, nas aulas dos professores Celso Lungaretti e Dalton Rosado, e demais colaboradores do Náufrago da Utopia. Perdoem meu deslumbramento,é que eu tenho ainda muito que aprender.
apollo natali

celsolungaretti disse...

RESPOSTA QUE O DALTON ENVIOU POR E-MAIL:

Caro Apollo,

Aguardo sempre com a ansiedade de um menino pelo dia de natal para ganhar um presente os seus textos literários que me confirmam a certeza de que o ser humano tem jeito, tal a sensibilidade demonstrada e, principalmente, no subtexto (que você como jornalista faz muito bem) e que é fruto da essência de sua alma generosa.

O texto sobre as cartas é uma obra literária brilhante que independe do reconhecimento das academias.

Faço esse elogio a você, não apenas em retribuição, mas por merecimento, apesar de não devemos nos furtar aos elogios recíprocos, pois somos aliados de uma mesma trincheira onde a arma é o amor e a solidariedade, sem necessidade de fardão, e isso nos fortalece.

Parabéns e obrigado pelo carinho de sempre.

Dalton Rosado

celsolungaretti disse...

OUTRA RESPOSTA ENVIADA POR E-MAIL:

Caro SF,

você também faz parte da nossa trincheira da solidariedade humana, com suas observações de alguém que se preocupa em aprofundar conhecimentos sem medo e sem compromissos dogmáticos, conservando-se na busca dessa deusa indecifrável chamada verdade.

Um abraço, Dalton Rosado.

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