sábado, 12 de novembro de 2016

UMA CRÔNICA SENSÍVEL DE APOLLO NATALI, RECORDANDO A ERA DAS CARTAS MANUSCRITAS

Uma crônica de Apollo Natali
Cartas manuscritas de outrora resistem ainda. Que bom.

Presidiárias nas gavetas, saudosas, obstinadas em seus mofos, letras apagadas a exalar saudade, a reviver paixões, a eternizar momentos.    

Compiladas na solidão de um quarto por mãos gratas, apaixonadas ou raivosas, são depositários de vida, de festas passadas, de angústias, de males, de canseiras dos mortais. 

No papel amarelecido, caligrafia desenhada, seus personagens se movem ainda.    

Gemem até agora suas vozes distantes.

Do papel de uma velha carta a pequenos bilhetes, saltam vultos com vida.  

De longos e aflitos manuscritos a familiares, amigos, parentes, amores, benfeitores, inimigos, pairam sombras, saudades de um corpo, perfume de uma alma, o bater de um coração. 

Hoje tirei do baú uma de amor, uma de horror, uma de torpor. E até uma de leitor.
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1) DE HORROR
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No palco do papel velho a se desfazer, encenam-se as lágrimas de uma formosa dama, que perdeu seus sete amores. Sete sobrinhos. Aids! 

Primeira página 
(a angústia de uma alma a desabar, encurralada 
pela fatalidade, sem ter para onde correr) 

"Querido amigo, tive mais uma terrível decepção, talvez a mais forte de todas e a de piores conseqüências.  Depois de ter perdido e estar por perder tantas pessoas queridas, joguei-me de corpo e alma no projeto naqueles meus gêmeos univitelinos. Dois sobrinhos uniplacentários, portanto do mesmo material genético. Cientistas americanos e franceses curiosos por um ser soropositivo e outro negativo. 

Através do Ministério da Saúde, em Brasília, foi elaborado um projeto em que grandes novidades sobre aids poderiam aflorar. Material exigido, contatos, combinações de horários para o envio de sangue dos dois, enfim, no dia em que fomos tirar sangue deles, ficamos sabendo que o outro, o sadio, também estava contaminado. Fim do projeto. Sétima pessoa da família com aids. Por Deus, não aguento mais!"
Segunda página

"Querido amigo, que lindo receber tua carta, que bom te saber ainda um pouquinho ligado a mim. Foi como orvalho sobre flores e eu te bendigo por isso. Vê bem, escreveste no dia, talvez até na hora, em que eu estava em uma mesa de operação. Não é incrível? Estou ótima. Das cinzas, renasci. Levou tempo. 
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A depressão tentou me dobrar depois daqueles acontecimentos terríveis. Agora estou nova, forte, corajosa, quero viver, dividir amor, beleza, vibração. Serei luz para quem precisar. Tenho forte consciência do que significa estar aqui. E não desperdiçar essa maravilhosa chance. Como estás? Nada dizes. Alguma coisa transparece em tua queixa (...nosso íntimo choroso de criança...). Ah, deixa eu te abraçar e te mandar como carinho verdadeiro a minha ternura. Te amo e quero que saibas disso. Quando nos veremos?"
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2) DE AMOR.
Primeira página 
(um sentimento sepulto no coração) 

"Se Deus tivesse querido que eu fosse feliz, teria me dado uma mulher como ela na juventude, para o amor furor, de perpetuação da espécie. Visitei-a num leito de hospital. Doença grave. Embriagado pelo brilho de seus olhos, minhas palavras vagarosas, de encorajamento, não escritas, o vento levou. E também minha proposta de fé, de encaminhamento a um núcleo espiritual, uma milagrosa cura, talvez." 
Segunda página 
(a resposta dela) 

"Querido amigo, cheguei bem, mas todo o tempo vim pensando em você, nas suas palavras. Você conseguiu dar forças a uma pessoa que já havia perdido a esperança de viver. Uma pessoa sem amor, sem carinho, um ser morto. Sem ânimo, sem esperanças de dias melhores. Mas Deus foi bom e pôs você em meu caminho para dizer coisas lindas e verdadeiras. Obrigada, meu grande amigo. 

Só um bom e querido amigo como você poderia fazer isso. Você não avalia o tanto que lhe quero. Você me foi enviado por Deus. A porta que Deus me abriu foi você, de quem aprendi como viver. Sem rancor, sem revolta e com minha doença. Sigo seus conselhos. Irei onde você disse e seja como Deus quiser. 

Gostaria tanto de ter você sempre junto a mim, para ouvir você falar coisas boas, como naquele dia. Sabe, viajei muito feliz e aliviada. Adorei estar com você naqueles minutos no hospital. Creia-me, esta carta foi escrita com carinho e afeição."
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3) DE TORPOR  

Foram 45 anos de Estadão daquele meu amigo. O maior pauteiro e repórter que eu já conheci. Jornalista apaixonado, vibrante, incansável. Uma criança hiperativa, de peito aberto. Escrevia para o jornalão e também para o meu serviço na Agência Estado. Por conta própria (o Estadão não pagou a viagem mesmo depois de ter coberto várias Copas do Mundo) entrevistou técnicos e jogadores no mundial do México para saber quais foram considerados os melhores. Telé Santana e Butragrenho. 

As famílias dos muitos amigos se refestelavam durante décadas no seu sítio à beira do rio. O vozerio das crianças povoava os dois casarões, duas piscinas, pomar, balanços, escorregadores. Apenas um amigo do Estadão o visitou no Unicor depois do AVC: eu.
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Ato contínuo ao AVC, um câncer de pele desfigurou seu rosto. Apenas um amigo ia papear com ele no alpendre de sua casa estilo mediterrâneo, no interior paulista: eu. O intenso perfume das flores do seu jardim não afastava minha tristeza. No velório e na missa, apenas um amigo do Estadão: eu. 

O fotógrafo famoso que o acompanhou nas coberturas de todas as Copas do Mundo de futebol e tanto frequentou com a família sua casa e seu sítio, não deu nem um telefonema ao inaugurar exposição de fotos na sua cidadezinha. Então, eu vi meu amigo chorar. A meu pedido, Julinho Mesquita publicou de graça no Estadão dois grandes anúncios, quinta-feira e domingo, para a venda do seu sítio. 

A carta é de sua esposa. 

"Apóllo, nosso querido amigo, que permaneceu em nosso campo de visão e escuta, nós te agradecemos por essa perseverança, por esse carinho e atenção, aliviando nosso estado de torpor provocado pela tristeza sem remédio que nos invadiu. Você merece e te desejamos que o novo ano te traga muitas alegrias, novas descobertas no mundo espiritual e esperanças sempre fortes e renovadas. Um abraço, grande irmão!"
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4) DE LEITOR
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Gênero jornalístico opinativo. É a este interessante status jornalístico que a carta de leitor é erguida por alguns acadêmicos, como o professor da USP José Marques de Melo. Além da carta de leitor, os outros gêneros opinativos, segundo o mesmo acadêmico, são o editorial, a crônica, comentário, coluna, resenha, caricatura. Os gêneros informativos, que constituem a matéria-prima básica do jornalismo, são a nota e a notícia. Os interpretativos são a reportagem, a entrevista e o livro-reportagem, segundo o professor. Isso tudo para me gabar de que escrevo esse gênero opinativo, cartas para jornais, desde os 13 anos – estou com 80 – movido pela indignação diante de coisas erradas. 

Com as cartas aos jornais, meu objetivo sempre foi denunciar para provocar uma melhora, uma correção, uma  mudança de situação. Tal é a missão, creio, desses seres especiais chamados jornalistas, em seu trabalho diário. É o impulso sempre a mover o jornalista Ricardo Kotscho, me lembro, em suas humanas reportagens. Informar para transformar, ensina ele. No meu caso, sempre procurei exercer o jornalismo de resultado. O que reporto, o que escrevo, o que edito, tem de contribuir para trazer um resultado, uma solução. Não condene a escuridão, acenda uma luz. 

Em meio à metástase de corrupção no meio político que leva os brasileiros às lágrimas e que empurra o Brasil para o naufrágio, chorei este soneto:. 
O QUE O POVO MAIS QUER
.O que é, o que é, que o povo deseja:
casa, comida, um emprego, é certo,
conta no banco, viver sem aperto,
estar feliz, de ninguém ter inveja,
comer, beber, ficar com os amigos,
filhos na escola, a creche bem perto,
não às dívidas, ficar é esperto,
rezar e rezar, atento aos perigos... 
Mas é só perguntar, e ver e saber,
o que o povo mais quer, e não remedeia,
e diz o que quer, toda hora, hora e meia,
tudo, tudinho, o que ele mais quer
e mostra firmeza, diz, não rodeia:
quer é político ladrão na cadeia!

2 comentários:

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Você vai achar gozado, Apollo, se eu disser que li o texto todo em versos. Eu o li em versos livres, construindo-os com agrado ao longo das sentenças, como os que existem na imensa lírica da língua portuguesa, quase tão grande quanto o próprio idioma, para terminar de ler com o soneto. Um poema dividido em partes, segundo o melhor figurino, aquele que é mais intuitivo e afetivo que "visual", ou "formal". Ave, Apollo!

Os escritores que tenho encontrado na atualidade, a propósito, são umas bestas. Andam sempre muito interessados em demonstrar a sua genialidade recorrendo a lances de estilo mais manjados que nota de dois reais, desesperados para revelarem as suas extraordinárias personalidades (são sabichões inimigos de qualquer erudição ou qualquer refinamento, uma dessas duas é sempre necessária), já que as suas tentativas de literatura não dizem nada que possa ser apreciado por um ser humano, com sentimentos e ideias de ser humano. Eles ignoram que a genuína simplicidade, que jamais é simplória, é a única coisa capaz de fazer alguém ler um prosador muitas e muitas vezes. A escrita que aprecio pode também ser ingênua, sem no entanto ser tola, e pode ser prosaica, sem jamais ser medíocre. É bom ler os seus textos.

multiecoss disse...

Lindo poetico humano! Vamos com menos velocidade por favor!

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