quarta-feira, 16 de novembro de 2016

DOIS CENÁRIOS FUTURISTAS DO DALTON ROSADO

PRODUÇÃO DA RIQUEZA ABSTRATA 
vs. PRODUÇÃO DA RIQUEZA MATERIAL 
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1) A barbárie
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Era 2049, justamente cento e vinte anos após a Grande Depressão de 1929. O país (e o mundo) passava por um período de redefinição social, após as guerras generalizadas que dissolveram a ordem constitucional em cada nação. 

Vivia-se uma anomia social e as pessoas, fugindo da guerra civil, buscavam um novo modo de produção para escaparem da fome e da violência que se instalara. 

Havia também preocupação com a escalada de fenômenos climáticos adversos que assolavam o Planeta. Mais terremotos, tufões, furacões, tornados, tsunamis, incêndios florestais, secas e inundações. Tudo isso causado pelo aquecimento global que, face à insistência na vida social mercantil, não fora evitado.

Neste cenário vivia, com sua família, um grande industrial falido. Moravam todos numa fazenda que um dia lhe pertencera, como uma de suas muitas propriedades e, depois, como a única propriedade restara após a decretação judicial de indisponibilidade dos seus bens. 

Agora, contudo, era parte da massa falida, administrada por um síndico que desaparecera. O processo fora suspenso pela completa paralisia do poder judiciário (até os juízes haviam abandonado as cidades onde exerciam seu ofício!).  

Sobrou para a família o refúgio nessa fazenda que outrora lhe pertencera exclusivamente, mas que agora ela era compartilhada com centenas de famílias que ali se instalaram à força, algumas em acampamentos improvisados e outras em toscas construções inacabadas.

A posse nominal (que deixara de ter qualquer importância, pois o direito de propriedade não fazia mais sentido) ainda estava em nome do filho do referido industrial: ao nascer ele a recebera como presente,  tendo a doação sido registrada em cartório.  
A tal fazenda, apesar de o terreno ser fértil e de haver um rio a margeando (garantia de água abundante para as plantações), tinha valor inexpressivo, em contraste com o vulto do patrimônio industrial à época em que ocorreu a despretensiosa doação. Agora ela possuía grande valor material; era a alternativa à fome.
  
Já não havia um padrão monetário a mensurar qualquer bem, pois a moeda simplesmente havia perdido poder de compra e desaparecera. O Estado, falido, se desintegrara e as forças militares, sem salários, desertaram e se juntaram aos civis na luta pela sobrevivência. 

A falta de dinheiro era completa, provocada pela falência do Estado e do padrão monetário oficial, bem como pelo confisco dos depósitos bancários, decretado tanto pelo governo como pela Justiça.

Aliás, após anos de disputa judicial pela propriedade dos mesmos, descobriu-se que os valores respectivos haviam simplesmente evaporado: os bancos já não possuíam em seus cofres papel-moeda para devolver aos depositantes. E, mesmo que ainda existisse, já não teria nenhuma serventia, pois o processo inflacionário havia reduzido seu valor de compra a zero. 

Nas cidades reinava a escassez de alimentos e os supermercados, temendo os saques, haviam fechado as suas portas há tempos, quando ainda havia moeda circulando. 

A maioria das casas estava desocupada, pois seus moradores tinham migrado para o interior, principalmente para fazendas, granjas e sítios nos quais ainda podiam plantar e criar, obtendo alguns alimentos. Era a forma de vida ainda viável.

As poucas vendas ainda efetuadas nas cidades se davam pelo sistema de pagamentos antecipados, feitos num tipo de moeda criada pelo câmbio negro e convencionalmente ainda aceita, intermediadas por escritórios, sem que se soubesse o esconderijo das mercadorias, com entregas protegidas por milícias armadas. 

Tais moedas eram obtidas pelo sistema de venda de alimentos produzidos no interior e transportados clandestinamente, ou de objetos que tivessem um valor de uso qualquer (alimento excedente, relógio, um sapato feito artesanalmente, roupas, utensílios domésticos, etc.).                      

Inexistia governo reconhecido e a vida na cidade se tornara quase inviável. Pouquíssimas famílias e renitentes salteadores eram os únicos que nelas permaneciam.  

As terras haviam voltado e ter importância vital na medida em que a produção industrial urbana estrara em colapso pela inexistência de um padrão monetário oficial e o redivivo escambo não viabilizava operações mercantis de maior monta. 

Quase todas as fábricas haviam fechado. As poucas ainda funcionando eram tocadas por seus antigos trabalhadores, que se propuseram a produzir bens para suprir necessidades urgentes de todos (principalmente para as fazendas). Os insumos a serem processados industrialmente eram adquiridos clandestinamente e, não raro, tais núcleos produtivos eram saqueados por turbas desesperadas e agressivas. Somente nas fazendas é que se podiam respirar ares de vida razoavelmente civilizada.

Mas já se pensava na retomada da produção sem a interveniência da forma-valor, pois a necessidade aos poucos ia arejando as consciências. Para um número cada vez maior de pessoas caía a ficha de que em nenhum produto existe um grama sequer de dinheiro. A vida começava a florescer sob outras bases.
  
2) Náufragos sobreviventes da utopia
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Corria o ano de 2099. A vida transcorria sob outro paradigma após a implosão completa do sistema financeiro internacional que ocorrera em 2049, abolindo a forma-valor e a riqueza abstrata (consequentemente, haviam sido varridos os conceitos de trabalho abstrato, mercadoria e dinheiro). Já tinham sido parcialmente superadas as cicatrizes das catástrofes bélico-ecológicas que culminaram em 2059 em uma escassez de água que provocou a morte de 30% da população mundial. 

As gerações mais jovens haviam nascido depois de extinta a mediação social sob a forma-valor, só conhecendo por relatos do passado o sistema produtor de mercadorias, no qual todos precisavam dar a alguém chamado patrão, de modo privado e pessoal, parte daquilo que haviam produzido e que era mensurado por uma coisa chamada dinheiro

Estranhavam que tal sistema proporcionasse um padrão de vida majestático para uns poucos, em detrimento da esmagadora maioria; e que as pessoas aceitassem passivamente a irracionalidade e as injustiças. Aí alguém lhes explicava que tudo lhes era imposto mediante coerção sistêmica psicológica, institucional, legal e física (manu militari). 

Na nova realidade, os bens necessários ao consumo humano abundavam de tal forma que todos os itens (produzidos de forma ecologicamente correta) eram disponibilizados para todas as pessoas. Poucos produtos ficavam excedentes ou apodreciam antes de consumidos, graças a um planejamento que funcionava quase à perfeição.

Os centros de abastecimento ficavam à disposição dos consumidores, que se abasteciam com aquilo de que realmente necessitavam naquele momento, pois preferiam consumir alimentos frescos e sabiam que nada daquilo faltaria nas prateleiras nos dias subsequentes. Não mais havia o sentido de acumulação privada, que deixara de ter sentido prático. 

Assim se vivia porque a tecnologia e o saber, bem como todos os recursos naturais, agora beneficiavam toda a humanidade, racional e indistintamente. Ninguém precisava roubar itens de consumo, já que não havia o conceito de riqueza abstrata privada ou estatal a ser acumulada (nem mesmo o conceito jurídico de propriedade), mas apenas o direito de posse dos bens de uso pessoal necessários para os seres humanos. O Direito, agora, correspondia ao melhor sentido de Justiça. 

Os locais de moradia eram projetados de forma ecologicamente correta para enfrentar os problemas ainda decorrentes da hecatombe bélica e ecológica (terremotos, resíduos de radiatividade e aquecimento da temperatura) que se abatera sobre o Planeta, fruto da irracionalidade das práticas adotadas em décadas anteriores.

A vida social era tranquila e os crimes contra a vida, muito raros (quase sempre de natureza passional ou emocional, jamais patrimonial). Não havia polícia, mas poucas pessoas com funções judiciárias penais. 

A produção de bens e serviços exigia do cidadão apenas duas horas diárias, geralmente despendidas no controle de equipamentos tecnológicos, sendo rara a atividade que demandava esforço físico mais intenso. Assim, as pessoas tinham bastante tempo para o chamado ócio produtivo (lazer, esportes, artes, literatura, convívio social, etc.). A locomoção em transportes coletivos movidos a energia limpa era cômoda e rápida.

Surgiram problemas inesperados como o aumento espantoso da resistência dos microrganismos bacteriológicos aos antibióticos, daí a necessidade de esforços concentrados na batalha contra as epidemias; e chuvas de meteoros que começaram a ameaçar o Planeta.

Mas, como já não havia beligerância fratricida entre os homens, tais problemas foram sendo por eles resolvidos mais facilmente.

Ou não? (por Dalton Rosado)

"Os bancos de caixas fortes/ que eram rochas, 
se quebraram/ e um rio de dinheiro correu"

4 comentários:

Anônimo disse...

Dependendo de quando começaram as guerras, com o excessivo acúmulo de pó e cinza na atmosfera, seria provável um esfriamento do planeta, afinal a incidência dos raios solares na superfície teriam sofrido uma forte redução. Então furacões e assemelhados provavelmente teriam sido reduzidos ainda mais que nas últimas duas décadas. Sem falar que apenas os mais fantasiosos alarmistas do clima conseguem fazer a correlação aquecimento global x terremotos, e os consequentes tsunamis.

Numa situação de caos como a imaginada poucos lugares do mundo teriam fazendas como refúgio, isto seria possível apenas em sociedade que permitem aos seus cidadãos o porte de armas de alto poder de fogo. No Brasil jamais.

A posse é que teria sentido, e não o registro da propriedade. Até porque não existiriam autoridades para exigirem o cumprimento das leis. Sendo o único poder coercitivo os detentores da força.

Moedas não existiriam numa situação dessas, apenas os itens materiais teriam valor. Um mercado de escambo, utilizando também sexo, pedras e metais raros. Se bem que poderíamos ter tampinhas de refrigerante circulando, uma inspiração Fallout.

A vida reiniciaria em outras bases? Sim, com o surgimento de senhores locais que se transformariam em tiranos regionais e o renascimento da escravidão clássica. Aliás, como ocorre atualmente nos chamados Estados falidos.

Seriam necessários séculos para que surgissem atores com com carisma e divulgação o suficiente para moldarem mentes e iniciarem uma nova sociedade. O problema é que poderiam ser novos Smiths, Mises, etc.

SF disse...

Essas projeções de futuros para a humanidade sempre me remetem a um tal John B. Calhoun e seus "universos" com ratos, principalmente o famoso Universo 25.
Como fiquei sabendo disso?
A biblioteca da escola pública onde estudei tinha uma coleção da enciclopédia Life e lá recebi notícias sobre o problema da superpopulação estudado por Calhoun.
A princípio achava o behaviorismo uma ofensa a humanidade. Achava que estudar ratos extrapolar para o ser humano era demais, dai que centrei minhas leituras em Freud, Reich e Pearls.
Os anos passaram e a vivência me mostrou que etologistas e behavioristas tem uma certa razão. As sociedades e os indivíduos comportam-se de maneira semelhantes as socidades murinas.
Vendo a presidente do STF visitando presídios espantada com a decadência, fico pensando se ela teve notícias de Calhoun? A NASA e alguns presídios americanos tem e levam a sério.
Calhoun mostrou que, com o aumento da população, os papéis sociais se degradam e, mesmo que volte ao nivel ótimo, a tendência é a extinção da socidade como um todo.
Este será o futuro mais provável da humanidade, pelo menos, foi objeto de experimentos e tem resultados observados.
Evidentemente, como é boa ciência, está sujeita a comprovação pela repetibilidade, mas ninguém conseguiu refutar os resultados dos experimentos de Calhoun, até o momento.
Se conseguissem, haveria motivos de esperança num fim menos trágico para espécies muito bem sucedidas ou socidades aonde a abundância de recursos e a facilidade de reprodução propiciaram a superpopulação.
Sem contar que a vaidade humana dos cientistas trombetearia a derrubada do paradigma.
Mas até agora o slêncio é sepucral.
Continua valendo o anotado no Universo 25.
É o mais provavel.
Podemos mudar o desfecho? Sim!
Basta usar a razão balizada pelo método científico.
Mas o ego deixará?

SF disse...

P.S.
A crítica feita foi que os "universos" eram muito artificiais e que as conclusões não poderiam ser extrapoladas para a realidade e tal.
A mim parece a mesma ojeriza que eu tinha em relação ao behaviorismo.
De outra feita, a seleção natural agiria e, provavelmente, haveria especiação.

celsolungaretti disse...

A MENSAGEM ABAIXO FOI ENVIADA PELO DALTON, JUNTAMENTE COM O ARTIGO. COMO NUNCA ME SENTI À VONTADE COM ELOGIOS, PRETENDIA DEIXÁ-LA DE LADO. MAS, LEMBRANDO QUE NESTE ESPAÇO ELE ENTRA COMO "LEITOR" E TEM O DIREITO DE VER PUBLICADO SEU COMENTÁRIO, O DALTON INSISTIU QUE O COLOCASSE NO AR. BEM, COMO FORMALMENTE ELE ESTÁ CERTO E O EDITOR NÃO É NENHUM CENSOR, PORTANTO AÍ VAI. (Celso Lungarett)

Caro Lungaretti,

com o presente artigo estou chegando ao número 100, em 239 dias (o primeiro foi em 27.03.2016), que perfaz um total de 1 artigo a cada 2,4 dias.

Sou profundamente grato a você por tudo (pelas correções de redação e de aperfeiçoamento com feição mais jornalista; pelas diagramações ajustadas ao veículo “náufrago da utopia”; pelas adequadas e criativas ilustrações e pela oportunidade de me proporcionar ser lido por milhares de leitores). Você faz um jornalismo que no futuro deverá ser reconhecido como heroico; como um partisan da resistência da guerra da comunicação.

Graças a isso escrevi um conto um pouco mais longo que faz uma prospecção ficcional de um futuro que nós, com nossos 66 anos, não vamos ver, mas que certamente teremos contribuído de alguma forma (ainda que não possamos dimensionar exatamente o grau de importância) para que ele acontecesse graças aos nossos escritos e exemplos pessoais.

Trata-se de uma visão otimista do desfecho final de toda a nossa luta, que espero que aconteça. É uma homenagem a você e um agradecimento.

Um abração, Dalton Rosado.

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