O recado do editor |
A melhor análise que li até agora sobre a saída da Inglaterra da União Européia é a do filósofo Vladimir Safatle na edição desta 6ª feira (01/07) da Folha de S. Paulo, daí eu a estar reproduzindo na íntegra, abaixo.
Serve, inclusive, como oportunidade para eu lembrar mais uma das lições esquecidas do velho barbudo: Marx acreditava que a humanidade marcharia do feudalismo para o capitalismo, e deste para o socialismo, sendo-lhe totalmente estranha a ideia de estimular o nacionalismo, a xenofobia e outros atrasos.
Sua visão era de que o socialismo só seria possível em escala global, implantando-se primeiramente nas nações mais pujantes, que seriam pouco a pouco seguidas pelas demais.
Desde Mao Tse-tung, há muitos esquerdistas acreditando em iniciar a derrocada do sistema capitalista pelos elos mais fracos da corrente, o que até agora redundou numa incrível coleção de fracassos.
Está na hora de voltarmos a priorizar as nações desenvolvidas em nossa atuação, pois, enquanto elas estiverem na trincheira contrária, terão poder de fogo suficiente para derrotarem ou cooptarem nossas forças.
E a superioridade da organização da economia em termos coletivos em termos coletivos e globais é exatamente o que queremos provar. Propomos isto e mais outro passo adiante, o fim da apropriação individual dos frutos do trabalho coletivo. O que ora se ensaia, pelo contrário, são vários passos para trás.
O pior que poderia acontecer agora é uma volta às rivalidades exacerbadas entre nações poderosas e que hoje contam com armas nucleares. Uma Europa Desunida bem poderá ser o estopim da III Guerra Mundial. É bem real a possibilidade de o capitalismo agônico e putrefato arrastar a espécie humana junto consigo para a destruição.
Por Vladimir Safatle |
O ESTADO-NAÇÃO
COMO PATOLOGIA
COMO PATOLOGIA
Muito já foi dito a respeito da decisão inglesa de sair da União Europeia. Ela é certamente um dos fatos mais importantes deste curto século por aquilo que explicita.
A União Europeia nasceu com a promessa de ser o início de uma era pós-nacional, na qual os Estados-nação se submeteriam paulatinamente a uma engenharia institucional capaz de garantir a existência de sujeitos políticos pós-nacionais.
Aos poucos, atribuições dos parlamentos nacionais passaram ao Parlamento Europeu, a criação de uma moeda única levou a um banco central transnacional, as universidades criaram sistemas de intercâmbio contínuo tendo em vista a formação de cidadãos europeus.
Nesse sentido, não se tratava apenas de um espaço de livre comércio, mas da tentativa de criação de um espaço político que deixaria para trás as estruturas dos Estados nacionais. Diferente da Organização das Nações Unidas, que sempre foi algo mais próximo a um fórum de debates, a União Europeia representou, pela primeira vez, um processo efetivo de transferência de poder.
No entanto, mais de 20 anos depois de sua instauração, a ira de parcelas expressivas de populações do velho continente contra a União Europeia é visível. A decisão inglesa, por mais suicida que seja do ponto de vista econômico e político (com a saída iminente da Escócia do Reino Unido), é apenas a ponta do iceberg.
A razão de tal ira talvez esteja involuntariamente bem expressa na representação visual de sua maior invenção, a saber, o euro.
Há uma certa ironia em perceber como as notas de euro não representam seres vivos (personagens históricos, animais, flora), mas objetos mortos, como pontes, viadutos e outras construções de infraestrutura. A ideia era louvar a circulação. Para ser mais preciso, a circulação de riquezas, de produção, de capital. Mas, de forma sintomática, nestas representações não há pessoas.
De fato, durante todos estes anos a União Europeia foi uma engenharia institucional que só esteve de acordo em dois pontos: organizar políticas massivas de salvamento do sistema financeiro combalido desde a crise de 2008 e estabelecer políticas comuns de limitação de circulação de imigrantes.
Os projetos iniciais de criação de uma Europa social, com estruturas transnacionais de garantias trabalhistas e defesa social, naufragaram rapidamente. No caso da Grécia, por exemplo, a União Europeia demonstrou toda sua irracionalidade ao impor medidas de austeridade durante anos com resultados catastróficos, decididas por tecnocratas sem rosto e sem disposição alguma para corrigir seus equívocos.
No entanto, o voto britânico foi um dos mais impressionantes passos na direção errada da história recente. Ele foi animado por dois fatores: a crença de que o fortalecimento do Estado-nação serviria de contrapeso a estas políticas que levaram à pauperização do continente e o medo diariamente alimentado pelo próprio governo e por setores da imprensa local contra o além-mar (imigrantes, refugiados e estrangeiros).
O primeiro fator é apenas a tentativa de ressuscitar um arcaísmo. O Estado-nação não existe mais e melhor seria que ele fosse desmantelado de vez. Ele é apenas um zumbi que se alimenta de algumas das piores patologias sociais de nossa época, como a paranoia identitária, a ilusão das fronteiras, a paixão pelo isolamento.
O Estado-nação não decide mais nada, mesmo quando ainda tem o controle de sua moeda, como no caso inglês. Apenas implementa políticas decididas por um sistema econômico global. Por isso, ele será usado todas as vezes que for o caso de desviar o eixo do descontentamento não para cima, ou seja, em direção àqueles que realmente decidem, mas para o lado, a saber, em direção àqueles que servirão de bode expiatório da vez, sejam poloneses, ciganos, negros ou árabes.
Freud não explica. É o Monty Python quem explica... |
Nos últimos dias, os ingleses descobriram uma obviedade: sair da Comunidade Europeia é impossível, daí esta situação digna de Monty Python de um país tentando adiar a implementação de uma decisão que ele mesmo tomou. As economias nacionais não existem mais.
Por essa razão, a luta pela defesa contra a espoliação econômica não passa pelos Estados nacionais, mas pela politização das decisões econômicas impostas por organismos transnacionais, como a União Europeia, o FMI e o Banco Mundial. Mas faz parte de uma certa gestão da política atual desviar continuamente os eixos reais dos problemas para espaços imaginários.
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