sexta-feira, 1 de julho de 2016

A MÚSICA BRASILEIRA É UM MARAVILHOSO BEM IMATERIAL DO NOSSO POVO.

Por Dalton Rosado
"Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro"
(Zé Keti, A voz do morro)
Houve um tempo em que o futebol era a pátria de chuteiras (Nelson Rodrigues), tal o encantamento mundial com a nossa habilidade nesse esporte. Infelizmente, os desmandos dos dirigentes nas máfias instaladas nas entidades esportivas do futebol se encarregaram de prejudicar burocraticamente aquilo que o povo desenvolveu a partir de um pedaço de terreno baldio e uma velha bola remendada. 

Mas, mesmo antes do futebol sempre tivemos uma arte na qual podemos dizer que nos igualávamos e nos igualamos aos melhores do mundo: a música.  A música brasileira sempre foi resultado de um fazer artístico que se igualava aos melhores do mundo; os nossos compositores e músicos a todos encantavam com suas letras, melodias e domínios instrumentais inatos. O conjunto histórico da obra musical brasileira representa um rico acervo, que se constitui em riqueza imaterial do povo brasileiro. 

No campo da música a nossa tradição vem de longe e abrange desde a erudita até a chamada música popular. Temos compositores clássicos, como: 
Villa Lobos: folclore em abordagem erudita.
  • o paulista Carlos Gomes, que se tornou internacionalmente conhecido a partir do seu sucesso na Itália e depois por toda a Europa, com obras imortais como O guarani, que foi inspirada no conto do mesmo nome do cearense José de Alencar; 
  • o carioca Heitor Villa Lobos, a partir do seu sucesso na França com obras como Trenzinho caipira, uma abordagem erudita da cultura popular; 
  • os cearenses Alberto Nepomuceno e maestro Eleazar de Carvalho, reconhecidos mundo afora; 
  • precursores como Chiquinha Gonzaga, gênio nascida da maravilhosa miscigenação genética e cultural brasileira (ela era filha da união de um senhor da aristocracia militar do império com uma descendente de escravos); 
  • o carioca Ernesto Nazaré, virtuose do piano e da composição; 
  • o paulista Zequinha de Abreu, autor de Tico-tico no fubá
  • Catulo da Paixão Cearense, autor de um dos hinos nacionais, Luar do sertão
  • Joaquim Calado, conhecido como criador do choro, ritmo que precedeu ao surgimento do samba, e autor do clássico Flor amorosa.      
São nomes e criações que estão inscritos(as) como representativos do que há de melhor na arte musical, em termos mundiais. 
Superespetáculos: a parafernália conta mais que a arte.
A música, infelizmente, foi  se tornando cada vez mais uma mercadoria, objeto de consumo mercantil, e como tal o mercado fonográfico passou a tratá-la, submetendo-a à insensibilidade artística, ao caráter onívoro da forma mercadoria, destituindo-a do lirismo e sensibilidade indispensáveis, comprometendo a sua qualidade. 

Mas ainda que esse mercado internacional (e nacional) fonográfico e midiático tenha moldado um determinado gosto padronizado de musicalidade, o que é verdadeiramente bom termina sempre por superar o fugaz imediatismo midiático, permanecendo na memória coletiva e se reproduzindo, independentemente de qualquer controle ou preconceito (como as músicas de domínio público que se perpetuaram sem que sequer se saiba quem é o autor). 

A música tem o poder de se impor contra a vontade das elites, se não vejamos: 
  • o tango argentino surgiu nos cabarés da próspera Buenos Aires do final do século XIX e foi tratada pela empedernida e rica elite argentina de então como música brega. Até que ganhou espaço a partir surgimento de um cantor do calibre de Carlos Gardel, que encantou o mundo. A partir daí, reconhecido na Europa (principalmente na França, onde, aliás, Gardel nasceu, tendo se mudado para a Argentina com meses de idade causa da intolerância dos franceses com relação às mães solteiras, caso da sua), o tango foi absorvido nos grandes salões e teatros portenhos, até se tornar a identidade nacional da Argentina;
    Carlos Gardel em sequência de dança com Mona Maris 
  • o blues afro-americano nasceu nos guetos negros do sul escravista dos Estados Unidos e foi inicialmente cantado nos ambientes fechados das residências e terreiros dos escravos, sendo depois incorporado aos cultos das igrejas evangélicas, sob um disfarce gospel. O blues profano somente foi aceito pela elite branca americana quando do surgimento de Elvis Presley, um brilhante intérprete branco que cantava e dançava como os negros (com os quais conviveu como white poor trash, como eram pejorativamente tratados os americanos brancos pobres). Elvis popularizou o nascente rock’n’roll, que nada mais era do que uma fusão do rhythm' and blues (o blues com a incorporação das guitarras elétricas) com o country & western branco, das regiões rurais. O sucesso avassalador entre os jovens passou por cima do fundamentalismo religioso cristão pentecostal americano e se impôs como identidade nacional americana, admirada no mundo inteiro e incensada como a mais nova oportunidade de faturamento e instrumento de propaganda cultural americana (assim a rebeldia blues/rock’n’roll dos negros foi colocada debaixo do tapete);
    A malandragem carioca de um século atrás
  • o samba afro-brasileiro, como sabemos, foi perseguido pela polícia, pois, afinal, a dita abolição da escravatura se deu para dar azo à escravidão do trabalho abstrato, produtor de valor mercantil, e não para os negros fazerem música. Os negros sambistas eram presos como capadócios (crime de vadiagem) e bastava um calo na ponta dos dedos para ser considerado um criminoso malandro violonista cantador de samba, crime ainda pior do que ser comunista. Tinham o violão apreendido e eram presos. O percussionista João da Baiana, além de cantor e compositor, certa vez teve o seu pandeiro apreendido, e o instrumento delinquente somente foi devolvido após a interferência de políticos que tomavam uns goles às escondidas no terreiro de samba da baiana Tia Ciata. Não obstante, o samba tomou as ruas, principalmente no carnaval do Rio de Janeiro, quando todos vestiam "uma camisa listrada" e saíam "por aí" (superando momentaneamente a cisão entre as classes sociais) e, "ao invés de chá com torradas", bebiam "paraty” (cachaça), como imortalizou Assis Valente. Assim, o samba se tornou uma identidade nacional.      
Carmen Miranda com Groucho Marx
Foi o samba, na voz de Carmen Miranda (favorecida pelo interesse dos EUA em promover a boa vizinhança durante a guerra) e a bossa nova (variação sofisticada, jazzística, do dito cujo) na voz de João Gilberto, que furaram o bloqueio do mercado fonográfico estadunidense e internacional, tornando-o mundialmente conhecido e admirado. 

Agora chegamos à era da internet, que, mesmo com as limitações próprias de uma telinha de celular ou de computador, tem o condão de arrebentar com o controle mercantil da música, oportunizando o aparecimento de tantos talentos nascidos do povo. 

Não devemos ter preconceitos com artistas em formação e novos ritmos como o funk da Anita ou o forró eletrônico dos Safadões da vida, porque o tempo se encarregará da depuração própria à seleção das obras artísticas musicais duradouras. 

Quem sabe eles não sejam considerados no futuro (que me perdoem a possível heresia) como clássicos da música popular brasileira?
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Um clássico absoluto do cinema com temática
relacionada ao samba: Orfeu Negro.

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