segunda-feira, 13 de junho de 2016

NOVO COLUNISTA, DAVID COELHO EXORTA A ESQUERDA A RETOMAR A LUTA PELA SUPERAÇÃO DO CAPITALISMO.

O FRACASSO DO 'PACTO CIDADÃO' 
E O FIM DA NOVA REPÚBLICA
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Por David Coelho (*)
Se há um termo que marca o período histórico brasileiro da nova república é cidadania. A Constituição de 1988 foi batizada de Constituição cidadã. Nos meios de comunicação, no discurso dos partidos políticos, nos empreendimentos intelectuais, tudo remetia à cidadania. De que se tratava esta tal cidadania?

Para entender, é preciso retornar ao período do regime militar. 

A ditadura instalada em 1964 no Brasil durou 21 anos, com um amálgama de repressão política e regressividade social. Não existiam nem direitos civis plenos, nem direitos sociais. O regime era brutal tanto com seu braço armado, quanto com seu braço econômico, impedindo a intervenção livre na vida nacional e a participação mais equânime na riqueza produzida. Ao final do regime militar, havia ânsia por democracia e também por avanços sociais. 

Os trabalhadores, duramente penalizados durante a ditadura, encamparam um forte movimento grevista que ajudou a abalar o já fragilizado regime. Contudo, o movimento que começou na aberta luta contra o capital e seu regime, foi desviado para o plano institucional da saída negociada

Ao invés de se jogar o regime ao chão por intermédio da massiva mobilização operária, o movimento foi atraído pela oposição liberal e persuadido a sustentar um pacto de conciliação. Neste pacto existiam dois eixos: redemocratização e instituição de direitos sociais
Constituição de 1988: ruptura tímida com a ditadura...

Ora, os dois eixos significavam não outra coisa que a manutenção do regime econômico herdado da ditadura, de sua estrutura estatal e jurídica e a criação de uma rede de proteção social que conseguisse fazer com que milhões de pauperizados dispusessem de condições para ter uma vida minimamente digna. 

Dito de outro modo, podemos dizer que tal pacto significou a preservação integral do regime burocrático-econômico herdado da ditadura, em troca de participação popular na vida política e social. Uma participação, contudo, tutelada. 

Do ponto de vista econômico, a tutelagem significou a garantia de certos direitos sociais (direitos trabalhistas, direito à saúde, à aposentadoria, à educação, à habitação, etc.) sem quebrar o regime acumulativo imposto pela ditadura; até pelo contrário, levando em conta a expansão deste regime acumulativo. 

Ou seja, incute-se uma ideia de que direitos sociais e crescimento econômico não estavam em oposição, mas sim eram aliados. Esta visão foi substancializada na Constituição de 1988, no que tange aos princípios diretores do estado brasileiro. 

Já do ponto de vista político, a tutelagem era entendida como uma participação política do povo, mas dentro de certos limites. Tais limites eram as estruturas burocráticas e jurídicas que garantem a preservação dos interesses do grande capital nacional e internacional no Brasil.
...e frustração das esperanças despertadas.

Deste modo, p. ex., o poder judiciário permaneceu extremamente fechado, as casas legislativas se abriram às vocalizações populares, mas sem grande margem de ação concreta, as cidades continuaram submetidas a um anacrônico policiamento militarizado, etc. 

Do mesmo jeito que a relação direitos sociais/regime acumulativo, a relação estruturas autárquicas/democracia foi entendida como sendo algo positivo, pois, por um remendo institucional, as forças repressoras passaram a ser entendidas como sendo forças “garantidoras do estado democrático de direito”. 

Em resumo, a nova república nasce de um pacto que busca mesclar a realização dos interesses do grande capital em preservar o regime de acumulação herdado da ditadura e uma concessão às classes trabalhadoras no sentido de permitir sua participação política e social, desde que dentro de limites. 

A grande ideia da cidadania é justamente a concepção de participação popular na vida social e política. Mas, tal participação cumpria ser circunscrita a limites rígidos e, acima de tudo, estar submetida ao regime de acumulação do grande capital. O grande discurso da cidadania, portanto, estava vinculado à lógica acumulativa oriunda do período ditatorial. 

Um ponto importante a ser considerado é que não houve questionamento radical à estrutura burocrática e social herdada do regime militar. A abissal desigualdade de renda no Brasil permaneceu na nova república, sendo apenas minorada com a instituição de uma rede protetiva, da qual os programas de transferência de renda são apenas parte, incluindo também, e sobretudo, o acesso universal à saúde e à educação. Não houve uma modificação da acachapante estrutura de expropriação dos trabalhadores. 

A desigualdade de renda no Brasil é escandalosa
O novo discurso do período pós-ditadura foi o de inclusão, o de garantir os direitos da cidadania. 

No interior da esquerda, perdeu-se a lógica de questionamento do regime de classes instalado no Brasil em favor da busca por uma inclusão cidadã dos setores historicamente marginalizados do país. A acumulação do grande capital deixou de ser um problema para esta esquerda, tornando-se – na rota do pacto da nova república – a grande chave para efetivar o projeto de cidadania. Assim, o crescimento da economia passou a ser entendido como princípio fundamental da realização dos direitos sociais. 

Após um início tortuoso devido à hiperinflação, aos choques da mudança na nova dinâmica da economia globalizada e, principalmente, ao tenso processo de acomodação das forças garantidoras do pacto, a nova república entrou em um período de estabilidade com o impeachment de Fernando Collor e a subida ao poder de Itamar Franco. A partir daí, fixaram-se as linhas condutoras do novo regime: alavancagem da acumulação, adequação ao regime financeirizado global e inclusão político/social tutelada. 

Criou-se um regime político tripartite, com PT/PSDB polarizando o controle do primeiro escalão do regime, enquanto o PMDB, por ser o partido mais antigo e mais inserido entre as milhares de oligarquias locais do país, fazia o papel de fiador do regime. 

O grande cerne da crise atual no Brasil é a exaustão do pacto cidadão forjado no fim da ditadura.
Junho de 2013: agoniza o processo de inclusão social.
Basicamente, coincidiu-se dois movimentos que criaram a tempestade perfeita: de um lado, o projeto inclusivo claramente bateu no teto, fazendo com que milhões de brasileiros se indignassem com os limites impostos pelo sistema de tutelagem (as grandes manifestações de junho de 2013 devem ser entendidas, em parte, nesta linha); de outro, uma profunda recessão econômica, ocasionada pela crise de 2008, fez travar o processo acumulativo. 

Ou seja, a crise brasileira é uma mistura de exaustão de um modelo (o da inclusão tutelada) e profunda crise econômica. Em resumo, houve estagnação do processo inclusivo e de acumulação. 

Ora, mas essa é a dinâmica do sistema capitalista no Brasil e a lógica imposta pela burguesia nos últimos 31 anos. A grande pergunta é: e a dita esquerda?

Conforme colocado acima, a esquerda abdicou da crítica ao regime brasileiro de classes em nome do projeto cidadão da inclusividade. Tal projeto, como dito, era basicamente um sistema  de associação entre regime acumulativo altamente predatório e um sistema de compensação social. A esquerda aderiu a tal projeto de modo hegemônico. Aqui, não é preciso fazer segredo que falamos do PT e de seus agregados, mas não apenas deles. Outros setores da esquerda, mesmo críticos ao PT, também aderiram ao ideal da cidadania.

Contudo, o grande problema da tese da cidadania, considerado em sua acepção exclusiva, é ser uma concepção, por natureza, subsumida à lógica da sociedade capitalista. 

"O cidadão vive num mundo ficcional"
Em seu livro A Questão Judaica, Marx analisa a diferença estabelecida na revolução francesa entre os direitos do homem e os direitos do cidadão

Nos direitos do homem estão incluídos os direitos à propriedade privada e à segurança jurídica, p. ex. Já nos direitos do cidadão estão abrangidos os direitos políticos. Para Marx, essa cisão significa a própria cisão da sociedade burguesa entre o ser humano concreto -egoísta, proprietário e em disputa com os demais seres humanos – e o ser humano abstrato – altruísta, igual aos demais e solidário. 

Esta cisão marca uma distinção operada pela sociedade capitalista entre o ser humano concreto e o cidadão. Enquanto o ser humano concreto vive em um mundo desigual e miserável, onde apenas os proprietários possuem de fato direitos, o cidadão vive num mundo ficcional, onde todos são considerados iguais em abstrato. O grande problema é que a abstração da cidadania não é realizável na prática, onde impera a lógica do capital e a ditadura dos proprietários. 

Em resumo, ao acreditar na lógica da cidadania, a esquerda se entregou a uma dinâmica abstrata, que fatalmente se chocaria com a realidade concreta. 

Crer na inclusividade pela via da cidadania significou abdicar da luta pela transformação concreta da realidade social em nome de uma lógica abstrata e descomprometida com a alteração do cotidiano das pessoas. Dito de outra maneira, embarcou-se na perspectiva de uma igualdade fictícia e na manutenção de uma dinâmica social profundamente desumana. Enquanto no discurso falava-se em humanidade, no mundo real reinava a barbárie. 

Diante disso, a única via possível à esquerda é retornar à crítica do mundo social concreto, voltando, como Marx, a encarar a emancipação humana como objetivo primeiro e único fim possível. 
Ou seja, é necessário retomar a luta pela superação do próprio capitalismo, descartando a ilusão de que seja possível compatibilizar capital e humanidade.
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* Nosso novo colunista, David Emanuel de Souza Coelho é formado em filosofia pela UFMG e ora cursa o doutorado.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito boa análise. Parabéns, David!

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