Fiquei mais tempo preso do que livre no Rio de Janeiro, então, minhas lembranças são divididas: nelas há o melhor e o pior.
O cenário exuberante e o povo efusivo e acolhedor como eu nunca vira igual, nos quatro meses em que lá militei, lutando contra a ditadura militar, até ser preso em abril/1970.
Quando machuquei o pé e andava manquitolando pelas ruas da Zona Norte, desconhecidos me dirigiam gracejos simpáticos e até ofereciam ajuda. Que diferença dos paulistas sisudos e apressados!
Amei a metade pobre da cidade, que fiz questão de conhecer bem, mesmo correndo riscos temerários. Era jovem e acreditava que poderia sempre me safar de qualquer situação.
Então, morando no Rio Comprido, muitas vezes descia do ônibus e atravessava o mangue, para chegar ao quartinho alugado no apê de uma simpática velhinha.
Eram vários quarteirões dedicados à prostituição, cuja visão estava vedada aos motoristas e passageiros dos veículos que transitavam pela Av. Presidente Vargas: enormes tapumes escondiam as vergonhas da cidade turística...
Tudo lá me lembrava um filme de Fellini: as meretrizes feias e decadentes exibindo-se de calcinha e sutiã, as luzes coloridas dos bordéis (vermelhas, amarelas, verdes e azuis), os vendedores de churrasquinhos de gato e de vários tipos de batidas, os engraxates, os agenciadores de apostas.
Evidentemente, lá também deveriam rolar tráfico, receptação e outros crimes, de forma que um resistente armado e procurado jamais deveria cruzar aquele pedaço, mas sim o contornar.
Era mesmo, para mim, a distância mais curta entre dois pontos, mas dificilmente eu estava tão apressado a ponto de não poder optar por trajeto mais sensato.
No entanto, minha curiosidade, aos 19 anos, pesava mais do que a cautela. E acabei nunca tendo problema nenhum nessas andanças.
Também adorava a velha Lapa, a Cinelândia, a Vila Isabel do bom Noel...
Menos, muito menos, a Zona Sul, onde ia mais para cobrir pontos do que no meu tempo livre.
Vez por outra, cheguei a tomar chopps nas mesinhas de calçada de Copacabana e a bater papo com um ou outro carioca cordial -- eles ainda existiam.
Já as recordações das casas dos mortos que conheci por dentro no Rio -- as PE's da Tijuca e da Vila Militar -- são bem mais amargas, claro.
Mesmo assim, lembro-me com carinho dos sentinelas que, embora assustados, compadeciam-se de nós, presos políticos, e ajudavam como podiam, principalmente passando alimentos.
Por termos perdido muito peso, o pão com manteiga era um banquete e o horrível café aguado com leite parecia o néctar dos deuses, pois fornecia o açúcar de que carecíamos muito.
Noves fora, é com imensa tristeza que vejo o Rio de Janeiro transformado em campo de batalha. Sua imagem mais característica, nesta triste semana, deixou de ser a estonteante beleza da avenida Atlântida, mas sim os automóveis ardendo em chamas.
O capitalismo consegue destruir tudo que há de nobre, justo, belo e digno na existência humana -- ainda mais no atual estágio de putrefação.
O preço de manter represada a revolução, cada dia mais necessária, é ver tudo se transformando em terra arrasada.
Tanto que a Cidade Maravilhosa hoje está mais para cidade em polvorosa...
2 comentários:
Como carioca, agradeço o carinhoso retrato poético da minha cidade que você tem guardado em sua memória.
Amo a cidade e os meus conterrâneos, mas hoje estou de luto, nem nos piores momentos da ditadura vi tantas armas nas ruas e tanto medo.
Sinto-me em uma cidade partida, onde desesperadamente o poder público tenta, via repressão, controlar os efeitos do histórico abandono das classes menos favorecidas, que fomentaram o espetáculo de horror que estamos presenciando agora. Infelizmente a questão social ainda continua sendo caso de polícia... Até quando vamos aceitar que a questão social seja resolvida na base da bala e da prisão?
Gostaria de ter esperanças que estes lamentáveis episódios servissem para levar a nossa sociedade a cobrar das autoridades medidas efetivas no combate à desigualdade, mas infelizmente a maioria da população está satisfeita com o paliativo da repressão.
O sentimentalismo predominou toda vez que se queria acabar com as favelas. Nem o risco de desmoronamentos que coloca em risco a vida de quem mora lá, demovia as forças políticas a favor das favelas. E assim elas cresceram. Montanha de casas amontoadas na montanha. Uma montanha de problemas, que agora parecem insolúveis. Essa repressão policial não vai resolver. É apenas paliativo. fazer o que , né?
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