quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

DISSECANDO O PRIMARISMO POLÍTICO

Ao expor o primarismo político que grassa na esquerda virtual, escancarado nas diatribes contra a Anistia Internacional, eu não tinha ilusões quanto ao resultado.

Os companheiros com mais informações e melhor formação já nem se dão mais ao trabalho de confrontar o sectarismo dominante.

Sua atitude segue mais ou menos a racionália de um ótimo verso do poeta Capinan: "moda de viola não dá luz a cego".
Ou seja, guardam sua luz para si, dando como irremediável a cegueira dos autoritários de esquerda.

Esses novos bárbaros engendrados pelo refluxo revolucionário das últimas décadas, por sua vez, não têm a mais remota idéia de que a proposta original de Marx era levar a humanidade a um estágio superior de civilização, no qual cada homem pudesse desenvolver plenamente suas potencialidades, liberto dos grilhões da necessidade.

Marx nos apontou como objetivo último a instauração do "reino da liberdade, para além da necessidade". Quem luta atualmente por um objetivo tão formidável e, ao mesmo tempo, tão distante?

Uns se contentam em gerir o estado burguês no lugar dos burgueses, o que lhes dá condição de melhorarem um pouco a situação material dos trabalhadores e aliviarem, também um pouco, as agruras dos excluídos. Há um século seriam qualificados de reformistas.

Outros se fanatizam com projetos autoritários e personalistas de poder que, como bem lembrou o Carlos Lungarzo, têm mais afinidade com o fascismo original de Benito Mussolini do que com as políticas de esquerda.

Estes últimos, no afã de justificarem rudes transgressões dos direitos humanos, não hesitam em promover campanhas virtuais de descrédito da Anistia Internacional, da Human Rights Watch, da ONU e quem mais ainda preze os valores civilizados. Em sua marcha regressiva, implicitamente cancelam até a Grande Revolução Francesa.

É claro que, chegando aos 60 anos, não tenho prazer nenhum em ser alvo da sua irracionalidade em estado bruto.

Houve até quem colocasse em discussão se eu estaria sendo financiado pela CIA, o poder oculto atrás da AI, segundo a interpretação conspiratória da História... Ao atribuir motivos tão pequenos aos outros, esse cidadão projeta uma imagem horrorosa de si próprio.

Mas, alguém tem de empunhar a bandeira da esquerda libertária, mantendo viva a promessa de que os ideais revolucionários e a promoção dos direitos humanos voltarão a ser uma e a mesma coisa, norteando a nossa luta.

E, à falta de um companheiro com mais méritos e saber, eu cumprirei esse papel.

Simplesmente porque não consigo suportar a idéia de que um jovem tentado a fazer algo para melhorar o mundo, ao considerar a opção revolucionária, o faça a partir de modelos tão reducionistas, atrabiliários e pouco inspiradores como os de Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad.

Enquanto eu tiver forças e lucidez, continuarei repisando: isso que hoje passa por atuação de esquerda é quase nada, perto da visão grandiosa que os profetas do marxismo e do anarquismo descortinaram para a humanidade.

6 comentários:

Marco Rocio disse...

Prezado Celso,

Versos de Cacaso ou de Capinã?

Grato,

Marco

celsolungaretti disse...

Você está certíssimo, Marco, obrigado. Já corrigi o artigo.

Anônimo disse...

Mesmo simpatizando com a esquerda, militando nela, preciso admitir que o conforto não traz progresso, que no dia em que não houverem necessidades cessará todo progresso e quiçá o trabalho produtivo.
Todo cientista, profissional que se destaca acima da mediocridade é impulsionado por necessidades ou pelo desejo de transcendência.
Atendidos os desejos primários e alguns secundários, vamos para onde ?

Anônimo disse...

Ao anônimo acima: sua comcepção de 'progresso' é devedora do imaginário instituinte da sociedade capitalista.

Sobre essa idéia de 'necessidade' e sua satisfação e relação disso com a instituição do capitalismo eu sugiro a leitura de A Instituição Imaginária da Sociedade, de Cornelius Castoriadis, de Para uma Crítica da Economia Política do Signo e de Le Miroir de la Production, ambos de Jean Baudrillard.

Adriana Tanese Nogueira disse...

É isso que falta, "Anônimo". Falta VISÃO. Visão de futuro, portanto de práxis, de vida, de política, de ação no aqui e agora.
Visão tem a ver com theorein, palavra grega de onde nasce a nossa "teoria". Longe de ser a abstração inútil à qual está reduzido seu significado, teoria é a visão sobre o objeto da nossa ação/conhecimento. Ver nos permite saber para onde vamos. As teorias servem para dar direção. São estrelas guias. Não receitas de bola. Qualquer bom cozinheiro sabe cozinhar sem seguir receitas. A aplicação literal de receitas produziu o socialismo e comunismo que conhecemos: serviu para saber que não serve. Falta-nos hoje em dia voltar à teoria em sua essência, ao diamante que está por baixo das tentativas mancas e limitadas da história. É dentro do coração humanizado e da mente aberta que podemos reencontrar o melhor das teorias e finalmente abrir os olhos, ou melhor, tirá-los da fixação ao pequeno, imediato e proveitos. Sugiro estudar os grandes (sem endeusá-los) e fazer um pouco de introspecção. Pois o mundo novo há de ser criado por seres humanos novos.

Anônimo disse...

Moro em uma casa grande, em uma cidade grande.
Quando caminho, piso no trabalho de milhares de homens e mulheres que fizeram essa cidade.
E eu mesmo sou muito vagal, trabalho só quando estou acuado pelos meus prazos. Isso de prazos é um sofrimento, uma angústia, só extraem trabalho de mim à forceps.
Olho para todo esse trabalho cristalizado na cidade à minha volta e vejo a mesma tortura. Uma tortura necessária para criar a cidade e outra para mantê-la.
Chove, faz sol, as paredes escamam, os telhados se rompem, em poucos anos outra cidade substituirá a cidade que contemplo hoje.
Décadas de tortura inacabável enquanto a cidade existir.
Se fosse dado a todos os demais homens a viver tão folgado como eu vivo, essa cidade não estaria de pé, essas calçadas não estariam assentadas, esses muros cimentados, rebocados e pintados.
O que põem o mundo a andar é a necessidade de correr pelo pão de cada dia, todos os dias.
Os outros homens nem se dão conta da corrida de ratos em que estão metidos e como construiram tanto para sí, gigantesca prisão onde vivem e que agora se obrigam a uma jornada infindável de esforço para manter tudo arrumado.
E para fazê-lo, só tendo uma classe trabalhadora vivendo da mão à boca.
Se fosse declarado amanhã "de cada um segundo suas possibilidades e a cada um segundo suas necessidades", esse é exatamente o moto inatingível, duas medidas impossíveis de conciliar senão pela força.
Sei porque eu sou vagal, trabalho o básico e sonho com mais do que posso. Duas aspirações inconciliáveis, não fosse pela urgência da cobrança dos meus prazos.
O socialismo não pode resolver essa contradição básica entre indiíviduo e sociedade, a sociedade se move apenas porque o indivíduo é obrigado por suas necessidades.
A medida que as necessidades são satisfeitas, menos trabalho fornece o indivíduo.
Sei poque trabalho menos hoje do que quando ganhava menos da metade de hoje. A
medida que se sobe na escala social, menos esforço nos é cobrado.
Mais responsabilidade, mas menos esforço.
O que motivará o pedreiro, um autônomo, que chamei para consertar o vazamento do cano a aparecer aqui em casa, se ele não for movido pela necessidade, pelas contas a pagar ?
Como é hoje já um absurdo de caro e difícil conseguir que as pessoas trabalhem motivadas, imagina se as pessoas levassem uma vida mais mansa e tranquila ?
Nossas cidades desmoronariam e enfeiariam com nossos consertos improvisados.
E eu ao invés de programar e planejar teria de aprender a misturar cimento.
O programa que espere.
Terei de entregar menos trabalho intelectual ao montante de serviços que a sociedade recebe para repor parte do trabalho manual que não consigo mais obter, pois o pedreiro se encontra satisfeito e debalde.

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